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Polarização e reordenamento: A eleição de 2022 no Amapá

Ivan Henrique de Mattos Silva

 

Na semana das eleições, o cenário da disputa pelo Palácio do Setentrião, no Amapá, já aparece bastante consolidado. Das seis candidaturas registradas na Justiça Eleitoral, duas hegemonizaram – desde o início – as preferências do eleitorado nas pesquisas de intenção de voto: o ex-prefeito de Macapá, Clécio Luís (Solidariedade), e o atual vice-governador do Amapá, Jaime Nunes (PSD). Em todas as pesquisas realizadas até aqui, ambos abriram, pelo menos, trinta pontos percentuais de vantagem em relação ao terceiro colocado – o ex-senador Gilvam Borges (MDB): segundo a última pesquisa Rede Amazônica/IPEC, divulgada no dia 17 de setembro, Clécio aparece com 50% dos votos no primeiro turno, seguido por Jaime (36%) e Gilvam (4%).

 

A polarização eleitoral em torno dessas duas candidaturas traduz, em grande medida, no âmbito local, a mesma polarização verificada no cenário nacional: a candidatura do Clécio é apoiada pelo ex-presidente Lula (PT) e por boa parte dos partidos da esquerda e centro-esquerda no Amapá, e a candidatura do Jaime é apoiada pelo presidente Bolsonaro (PL), bem como por boa parte do bolsonarismo local. A construção desses palanques, todavia, merece uma discussão um pouco mais pormenorizada, e possui, como pano de fundo, um importante processo de reordenamento do quadro político e eleitoral no estado.

 

Famílias políticas e o sistema partidário amapaense (1994-2018)

Considerando que o Amapá só deixou de ser um Território Federal em 1988, duas características são fundamentais para a compreensão do sistema partidário amapaense ao longo de boa parte de sua existência: por um lado, uma hegemonia bipartidária nas disputas pelo Governo do Estado do Amapá (GEA), representada pela polarização entre PSB e PDT, e, por outro, uma justaposição entre as estruturas partidárias e o predomínio de duas tradicionais famílias políticas amapaenses: a família Capiberibe e a família Góes, respectivamente.

 

João Capiberibe (PSB) – principal liderança do partido no estado – foi eleito governador pela primeira vez em 1994, e reeleito em 1998, quando protagonizou a disputa com o principal nome do PDT no Amapá, Waldez Góes. Em 2002, renunciou ao cargo para concorrer a um mandato no Senado. Sua vice-governadora, Dalva Figueiredo (PT), concorreu à reeleição contra Waldez Góes – que foi eleito em 2002 e em 2006, novamente em uma disputa com João Capiberibe. Em 2010, a eleição foi protagonizada por Camilo Capiberibe (PSB) (filho de João Capiberibe) e Lucas Barreto (PSD[1]), e terminou com a vitória do candidato do PSB – o candidato apoiado pelo PDT ficou em quarto lugar, de quem ocupou a posição de vice na chapa com Alberto Góes (primo de Waldez Góes). Em 2014 e em 2018, novamente o PDT venceu a eleição para o GEA – e novamente com Waldez Góes: em 2014, contra Camilo Capiberibe, e, em 2018, contra João Capiberibe.

 

Embora com maior enraizamento no Legislativo, outra família possui uma importância singular na trajetória política recente do Amapá: a família Alcolumbre (que dá nome, inclusive, ao aeroporto de Macapá). A principal figura, hoje, é o senador Davi Alcolumbre (UNIÃO) – que foi vereador de Macapá, de 2001 a 2003 (pelo PDT), deputado federal (primeiro pelo PDT, e, depois, pelo PFL/DEM) e senador, desde 2018 (chegando a ocupar a Presidência do Senado entre 2019 e 2021). Davi concorreu, ainda, ao GEA, em 2018 – terminando na terceira colocação, quando contou com o apoio da REDE e de suas duas principais lideranças naquele momento: o senador Randolfe Rodrigues e o então prefeito de Macapá Clécio Luís.

 

Pelo menos outros dois membros da família Alcolumbre também possuem – embora em menor medida – uma inserção política importante na trajetória recente do Amapá: o primo de Davi, Salomão Alcolumbre (MDB) – que disputou a eleição de 2014 como segundo suplente na candidatura de Gilvam ao Senado – e seu irmão, Josiel Alcolumbre (UNIÃO), que foi eleito primeiro suplente em sua chapa ao Senado, em 2014, foi candidato à Prefeitura de Macapá, em 2020 (chegando ao segundo turno), e, hoje, concorre novamente ao cargo de primeiro suplente na chapa de seu irmão ao Senado.

 

As eleições de 2018 representaram o ponto alto da disputa entre essas três famílias pelo Executivo estadual – que figuraram nas três primeiras colocações na disputa pelo GEA –, e, a partir de 2020, verifica-se, no Amapá, um processo de reorganização do seu quadro político e de seu sistema partidário. A construção das duas candidaturas que hegemonizaram, hoje, a disputa pelo Palácio do Setentrião passa, necessariamente, por esse processo de reorganização, e é, em grande medida, também uma consequência dele.

 

As candidaturas de Clécio (Solidariedade) e Jaime (PSD)

Clécio Luís Vilhena Vieira possui uma trajetória partidária bastante identificada com o campo da esquerda amapaense: concorreu pela primeira vez em 2004, pelo Partido dos Trabalhadores, quando foi eleito vereador de Macapá; em 2006, após sua migração para o PSOL – seguindo seu principal mentor, o senador Randolfe Rodrigues (REDE) –, Clécio foi candidato a Governador do Amapá, e, em 2008, reeleito vereador da capital; concorreu, ainda, a deputado federal, em 2010, e, em 2012, foi eleito para a Prefeitura de Macapá – tornando-se o primeiro candidato do PSOL a se eleger para a prefeitura de uma capital no Brasil; e, em 2016, após nova troca partidária – novamente acompanhando seu mentor –, Clécio foi reeleito para a Prefeitura de Macapá, agora pela REDE.

 

Ainda que a REDE seja um partido cujos delineamentos ideológicos sejam pouco definidos e bastante maleáveis, no caso específico do Amapá – dada a proximidade de boa parte de seus quadros com o próprio PSOL –, o partido sempre se comportou como uma legenda abertamente vinculada ao campo progressista, reafirmando, assim, a imagem de Clécio como alguém organicamente ligado à esquerda – a despeito das migrações partidárias.

 

No entanto, o processo de sucessão à Prefeitura de Macapá, em 2020, criou fraturas importantes no campo político que sempre orbitou sua trajetória, e representou, assim, um reordenamento importante: após anos de proximidade política entre Randolfe e Clécio, de um lado, e o Senador Davi Alcolumbre, de outro, a adesão deste ao bolsonarismo, após 2018, estremeceu as relações entre eles e provocou um afastamento entre Randolfe e Davi. Assim, na eleição para a Prefeitura de Macapá, em 2020, o campo político de Davi Alcolumbre lançou como candidato seu irmão, Josiel Alcolumbre (UNIÃO[2]), enquanto a REDE – então partido de Clécio – decidiu lançar como candidato o advogado Ruben Bemerguy. A despeito da escolha do partido, Clécio decide apoiar Josiel (que, no segundo turno da eleição, contou inclusive com o apoio do Presidente Bolsonaro, em vídeo gravado para sua campanha), e, portanto, acaba se desfiliando da REDE e se afastando de Randolfe Rodrigues, após anos de parceria.

 

Esse rompimento teve reflexos diretos na construção das candidaturas de 2022 ao GEA: após meses de especulação em torno do nome de Randolfe Rodrigues, o senador decide não assumir a candidatura da REDE ao governo estadual para auxiliar a construção nacional da candidatura de Lula, e decide apoiar o nome de Lucas Abrahão (REDE) como o candidato do campo progressista no estado, com vistas à construção de uma aliança da esquerda e da centro-esquerda no Amapá que pudesse assumir, localmente, a liderança do campo popular em oposição ao bolsonarismo – já que tanto PT como PSB e PSOL haviam sinalizado nesse sentido em relação à possível candidatura de Randolfe Rodrigues.

 

Pari passu à reorganização da REDE, Clécio decide se filiar ao Solidariedade, sob a bênção de Davi Alcolumbre, para a construção da sua candidatura, e consegue construir uma coligação bastante ampla – da centro-esquerda até a direita: Solidariedade, União Brasil, PDT, PL, Republicanos, Partido Progressista e Federação PSDB/Cidadania. Seu arco de alianças conta, inclusive, com o partido do atual candidato à reeleição Jair Bolsonaro (PL). Ainda que sua coligação possua um forte vínculo com partidos do campo conservador, Clécio também buscou o apoio nacional do ex-presidente Lula, buscando, assim – ainda que com evidentes contradições –, assumir, no Amapá, a condição de representante eleitoral do antibolsonarismo. Essa complexa articulação produziu dois efeitos: por um lado, dado o robusto desempenho apresentado nas primeiras pesquisas de intenção de voto, conseguiu que a REDE retirasse sua candidatura – inclusive de modo a garantir palanque único para Lula no estado – e o apoiasse contra o candidato bolsonarista, e, por outro, embora tenha garantido o apoio de todos os partidos da esquerda e centro-esquerda – as federações PT/PCdoB/PV e PSOL/REDE, além do PSB –, não conseguiu trazê-los para a coligação, dada a discordância em relação ao candidato ao Senado pela chapa (novamente, Davi Alcolumbre).

 

Jaime Domingues Nunes é o atual vice-governador do Amapá e possui uma trajetória partidária menos extensa: antes de se candidatar, em 2018, pelo PROS, foi também candidato a vice na chapa liderada por Lucas Barreto (PTB) em 2010. O atual segundo colocado nas pesquisas de intenção de voto é, na verdade, mais conhecido por sua trajetória empresarial: é dono de uma das principais redes de lojas de departamentos do estado, é, ainda, dono de uma distribuidora de alimentos, de um grande supermercado, de uma transportadora e de uma emissora de TV.

 

Embora tenha sido eleito junto ao governador Waldez Góes, e ocupa, ainda hoje, a posição de vice-governador do Amapá, Jaime rompeu com o pedetista e constrói, hoje, uma candidatura de oposição, com forte discurso mudancista – curiosamente, identificando, na gestão atual, boa parte dos problemas vivenciados pelo estado. O apoio do atual governador à candidatura de Clécio é inclusive utilizado, nas peças de campanha, como instrumento de ataque e crítica.

 

Embora haja outra candidatura mais abertamente vinculada ao campo bolsonarista – o candidato Gesiel Oliveira (PRTB), que advoga sua vinculação ideológica ao bolsonarismo como estratégia de construção imagética –, sua posição nas pesquisas de intenção de voto aglutinou, em grande medida, o campo conservador no estado – sobretudo com a adesão de algumas lideranças importantes, como Cirilo Fernandes (Podemos), Guaracy Júnior (PTB) e Coronel Palmira (AGIR) –, configurando-se, assim, como o principal palanque do Presidente da República no Amapá.

 

O cenário eleitoral em 2022

As eleições gerais de 2022 já se apresentam como um pleito bastante sui generis – seja em função do avanço da violência política a níveis inéditos desde a redemocratização, pela constante agitação golpista e autoritária do Presidente da República, ou, ainda, pela crescente politização das Forças Armadas, que buscam se consolidar como fiadoras do processo eleitoral brasileiro, tutelando, de modo evidente, a soberania popular. Ainda que o caso amapaense traduza, em linhas gerais, alguns eixos desse cenário nacional, a peculiaridade do pleito deste ano se situa em outro registro.

 

A corrosão da hegemonia absoluta compartilhada pelas famílias Capiberibe e Góes – traduzidas em suas expressões partidárias, PSB e PDT, respectivamente – nas disputas pelo GEA produziu, pelo menos, dois efeitos de grande magnitude no cenário político local: em primeiro lugar, colocou, pela primeira vez desde 1994, famílias políticas historicamente adversárias no mesmo palanque (já que tanto os Capiberibe, como os Góes e os Alcolumbre apoiam o candidato do Solidariedade ao Governo do Amapá) – embora haja divergências quanto à candidatura ao Senado; e, em segundo lugar, permitiu a ascensão de duas novas lideranças que, embora não sejam necessariamente outsiders (um é ex-prefeito da capital e o outro é o atual vice-governador do estado), não fazem parte dos grupos políticos que tradicionalmente dominaram o cenário eleitoral no estado.

 

Ainda é cedo para que sejam feitas conjecturas a respeito do impacto dessas alterações, ou mesmo em relação à sustentabilidade, a longo prazo, dessas novas lideranças – seja do ponto de vista eleitoral, seja do ponto de vista partidário (em especial, dada a baixa fidelidade partidária de ambos). O reordenamento político ensejado na disputa eleitoral amapaense deste ano diz mais sobre a crise de um sistema partidário constituído no estado desde a sua configuração como unidade federativa do que sobre eventuais novos arranjos.

 

[1] Na época, era filiado ao PTB.

[2] Então, DEM.

 

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Ivan Henrique de Mattos Silva
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos, mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos, com período sanduíche na Brown University. Atualmente, é Professor Adjunto de Ciência Política na Universidade Federal do Amapá, e vice-coordenador geral do Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal (LEGAL).<br />