Carlos Ranulfo Melo
Entre 1994 e 2014 o Brasil atravessou um período marcado por notável estabilidade política. Nessas duas décadas o país consolidou instituições e práticas democráticas e afastou os prognósticos mais pessimistas acerca de sua democracia. Uma explicação, a essa altura já tornada clássica, para que isso ocorresse esteve no conjunto de instrumentos que conferia ao poder Executivo preponderância na formulação e encaminhamento de sua agenda, e no controle exercido pelos líderes partidários sobre a dinâmica congressual. Conjugados, esses dois elementos teriam permitido que o presidencialismo de coalizão funcionasse a contento.
A explicação, no entanto, deixava de lado um aspecto crucial da competição política nacional. Argumentava-se que o arranjo institucional funcionava bem a despeito do elevado número de partidos tanto na Câmara como no Senado. Isso fez com que não fosse dada muita atenção ao efeito estruturante das eleições presidenciais sobre o sistema partidário e, em consequência, sobre a dinâmica do sistema político.
O sistema partidário brasileiro atravessou um período de extrema fluidez nos anos que se seguiram à redemocratização. O bipartidarismo inicial – baseado na força de Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e Partido da Frente liberal (PFL) – logo se mostrou incapaz de canalizar o processo político em meio às dificuldades da transição. O número efetivo de partidos cresceu rapidamente e a primeira eleição presidencial, em 1989, reservou aos brasileiros uma surpresa ao eleger um político até então pouco conhecido, ex-governador do pequeno estado de Alagoas, lançado por um partido absolutamente inexpressivo.
O surpreendente resultado de 1989 parecia o prenúncio de muita turbulência – três anos depois o presidente eleito sofria um impeachment. Mas a eleição de 1994 iria alterar de forma substancial o quadro, dando novos contornos ao espaço político-programático em que se desenvolveria a competição pela presidência.
Segundo Peter Mair, “the core of any party system qua system is constituted by the structure of competition for control of the executive” (2006:65). Para o autor, a análise da estrutura da competição pelo governo central fornece indicadores que permitem captar com mais precisão mudanças em curso nos sistemas partidários. Trata-se de observar modificações no padrão de alternância no Executivo, nos processos de formação de governo e nos partidos efetivamente participam da gestão.
O que aconteceu no Brasil, após 1994, pode ser caracterizado como uma situação em que “a formerly incoherent set of interactions begins to take shape and acquires structure” (Mair, 2006: 64). Nas duas décadas seguintes, a competição em torno da Presidência da República passou a ser estruturada em torno de duas coalizões ideologicamente distintas, inaugurando uma dinâmica com impacto sobre as escolhas de cada um dos partidos relevantes e sobre o grau de consolidação do sistema partidário. À frente das duas coligações estavam o Partido dos Trabalhadores (PT) – credenciado na liderança da esquerda desde o desempenho de Lula em 1989 – e o Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), que rearticulou a centro-direita, enfrentou com sucesso o processo inflacionário e venceu a disputa em 1994.
A partir daí até 2014 a disputa presidencial esteve sob controle dos partidos, e não de lideranças em voo solo, e seu sequenciamento definiu de forma nítida os competidores e suas estratégias. PT e PSDB foram capazes de manter-se unificados um projeto de política nacional, subordinar eventuais estratégias locais aos imperativos nacionais, apresentar candidatos competitivos em todas as eleições presidenciais e dotá-los da necessária capilaridade. Como resultados conquistaram, em média, 81% dos votos validos no período.
Uma vez “estabelecidos” na arena presidencial, PT e PSDB influíram sobre as expectativas do eleitorado e o comportamento dos demais partidos, que passaram a estabelecer suas estratégias de sobrevivência definindo em que arena apostar suas fichas – no Brasil as eleições presidenciais, legislativas e para governadores de estado são casadas – e como se posicionar diante do jogo presidencial.
Ainda que a fragmentação partidária não cedesse – pelo contrário, continuasse a crescer – a competição partidária se estabilizou e a disputa pelo governo central adquiriu uma dinâmica moderada, o que muito contribuiu para as duas décadas de estabilidade. Continuidade e inovação se mesclaram nos planos de governo e nas políticas públicas. O país melhorou, estabilizou sua economia, obteve avanços no enfrentamento da miséria e da desigualdade e fortaleceu instituições chaves. Parafraseando Levitsky e Ziblatt, PSDB e PT funcionaram como “guardiões da democracia”.
A eleição presidencial de 2014 começou a alterar o cenário e a abalar os alicerces do período de estabilidade. Derrotado nas urnas pela quarta vez consecutiva, o PSDB questionou o resultado sem possuir qualquer evidência que questionasse a lisura do processo eleitoral. A isso seguiram-se a recessão do biênio 2015/2016, as investigações sobre desvio de recursos na Petrobrás pela operação “Lavajato” e as manifestações de rua contra o governo petista. Tal sequência de eventos permitiu colocar em curso uma estratégia que combinava o bloqueio legislativo sistemático ao governo eleito com a exploração das prerrogativas institucionais até o seu limite, visando interromper o mandato de Dilma Rousseff e derrotar, quem sabe de forma permanente, o PT. A oposição abandonou qualquer tipo de “reserva institucional” (Levistky e Ziblatt, 2018). Pedaladas fiscais foram transformadas em crime de responsabilidade e forneceram a cobertura legal ao impeachment. A comparação é elucidativa: se diante de Rousseff valeu a máxima “aos inimigos, a lei”, no atual governo o Presidente da República conta com amigos que, zelosamente, o protegem dessa mesma lei mesmo diante de denúncias incomensuravelmente mais graves.
A eleição de um candidato de extrema direita para a Presidência da República em 2018 alterou de forma expressiva a estrutura da competição pelo governo central. O padrão de alternância – até então entre coalizões de centro-esquerda e centro-direita – foi alterado. O Partido Social Liberal (PSL), um partido inexpressivo, sem trajetória de participação em governos nacionais ou estaduais, foi guindado ao mais alto posto da República. E a resistência inicial de Bolsonaro em constituir uma coalizão, somada à fragilidade de seu governo, abriu espaço para algo inédito no país: a formação de uma maioria legislativa, coordenada pelas presidências do Congresso, com capacidade de formular e aprovar sua própria agenda, atuando com relativa autonomia frente ao governo, e mesmo derrotando-o sempre que julgasse conveniente.
Sistemas partidários se definem pelo padrão de interação entre seus componentes. Nesse sentido pode-se dizer que o sistema partidário que girava em torno de PT, PSDB, Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e, em menor grau, do Democratas (DEM), deixou de existir. Somente o PT resistiu ao “tsunami” de 2018, graças a seu enraizamento em parcela do eleitorado e, especialmente, ao prestígio de Lula. A centro-direita, por sua vez, foi a principal vítima dos acontecimentos. Tucanos e emedebistas, atingidos por desdobramentos da Lavajato, foram engolidos pela maré antipolítica. Carente de base social, o PSDB perdeu seu mais valioso ativo nos últimos anos – o antipetismo encontrou em Bolsonaro sua nova expressão – e ficou sem ter onde se apoiar. A “fórmula mágica” do MDB – candidaturas competitivas aos governos estaduais como maneira de conquistar bancadas fortes – deixou de funcionar e o partido cedeu o lugar de ator pivotal no Congresso ao impropriamente chamado “Centrão”, um aglomerado de partidos conservadores que logo se acomodou no governo eleito. O DEM tentou manter-se à tona fundindo-se com o PSL, abandonado por Bolsonaro, e dando origem ao União Brasil (UNIÃO), em uma frágil e pragmática colagem de trajetórias diversas.
Na ausência de um partido capaz de assumir protagonismo a partir do centro, a eleição de 2022, como seria de se esperar, manteve o padrão de 2018. O país já havia experimentado, em 1989, uma eleição em que o centro político – à época representado pelo PMDB – não se revelara minimamente competitivo. A diferença é que em 2022, ao contrário do que ocorreu em 1994, o centro não teve forças para se reapresentar e atrair parte da direita.
Esta é a razão pela qual, na eleição desse ano, a chamada terceira via nunca passou de uma ilusão. Os partidos que poderiam lhe conferir musculatura – MDB, PSDB, UNIÃO e Partido Social Democrático (PSD) – simplesmente não tinham capacidade e unidade para tanto. O atual quadro torna isso claro.
Com a desistência de João Doria, o PSDB, pela primeira vez desde a redemocratização, não apresentou candidato, terminando por ocupar a vice-presidência na chapa do MDB. O movimento, no entanto, não revela qualquer entusiasmo e o mais provável é que seus candidatos nas distintas seções estaduais tratem de cuidar de sua sobrevivência, em muitos casos sem se preocupar em demarcar com o bolsonarismo, como acontece na disputa pelo governo de São Paulo. No MDB, uma dezena de diretórios estaduais oficializou apoio a Lula e em um estado ou outro a opção foi por Bolsonaro. A candidata do partido, a senadora Simone Tebet, patina nos 2% de intenção de voto e ameaça repetir o fiasco de Henrique Meireles em 2018. O PSD, definido desde o berço pelo seu fundador como uma legenda que não é “de direita, de esquerda, nem de centro”, confirmou que não é mesmo nada além de um aglomerado heterogêneo de forças regionais de olho em algum espaço na esfera federal. Incapaz de se definir, divide-se entre Lula e Bolsonaro, a depender das circunstâncias regionais. Isso vale também para o União Brasil: em alguns estados (Goiás e Mato Grosso) seus candidatos a governador apoiam Bolsonaro; em outros (Piauí, Bahia e Ceará) não querem o atual presidente no palanque ou não dizem nem sim nem não. Sacramentando a “união”, o deputado Luciano Bivar, presidente do partido, decidiu apoiar Lula e ainda especulou com a possibilidade, de resto inexistente, de levar a sigla para o mesmo caminho.
Nos próximos anos o grau de fragmentação do sistema partidário será sensivelmente reduzido graças às reformas aprovadas pelo Congresso em 2017 – introdução de uma cláusula de desempenho que deverá alcançar 3% em 2030 e proibição das coligações para as eleições legislativas. Mas não é possível dizer que tipo de sistema será esse, se alcançará um nível razoável de estabilidade, qual será o padrão de interação entre os principais protagonistas ou mesmo quais serão eles.
É razoável supor que o PT mantenha a capacidade de funcionar como um dos polos da competição política nacional. Mas além disso o cenário é incerto. Ao que tudo indica PSDB e MDB sairão ainda mais enfraquecidos da atual eleição. Raciocinando para além de 2022, o declínio dos tucanos, em especial, evidencia as dificuldades para que se rearticule uma coalizão de centro-direita na disputa pelos rumos do país.
O quadro se tornará ainda mais dramático se Bolsonaro for bem-sucedido em sua tentativa de reeleição – algo que não pode ser descartado, ainda que seja menos provável segundo as pesquisas de opinião. Nesse caso, a direita de perfil mais moderado – partidos como PSD e UNIÃO – poderia ser capturada pela força do bolsonarismo, mantendo o processo político impregnado por altas doses de intolerância e intransigência.
Uma vitória de Lula bloquearia essa possibilidade. Ainda que o bolsonarismo deva manter sua força enquanto um movimento dotado de expressiva base social, o jogo partidário mudaria. Os partidos que hoje compõem o núcleo duro de sustentação a Bolsonaro – PL, Progressistas (PP) e Republicanos – teriam menos incentivos a integrar uma força de oposição reacionária e autoritária, o que daria chance a uma reorganização do sistema partidário em torno de uma dinâmica moderada. A democracia brasileira ficaria muito agradecida; em boa parte, é ela que está em jogo em 2022.
Referências bibliográficas
MAIR, Peter. (2006), “Party system change”, in: Richard Katz and William Crotty (eds.), Handbook of Party Politics. London, Sage Publications.
LEVITSKY, S. e ZIBLATT, D. (2018). Como as democracias morrem. Zahar.