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Em defesa do Mito: o governo Bolsonaro e a reedição do Mito da Democracia Racial como espelho narcísico da nação brasileira

Rodrigo Jesus

 

Como o governo do presidente Jair Messias Bolsonaro, eleito para o mandato de 2018 a 2022, será lembrado no que se refere às políticas de promoção da igualdade racial no Brasil? Embora este pequeno artigo tenha a intenção de discutir “o silêncio como ritual pedagógico a favor do racismo” (Gonçalves, 1985) que, em minha percepção, marcará a atuação/omissão de boa parte dos ministérios nesta gestão, não podemos ignorar as declarações racistas emitidas pelo próprio chefe de estado, e alguns de seus comandados, antes e durante sua posse no cargo. Em palestra realizada no dia 03 de Abril de 2007 no Clube Hebraica no Rio de Janeiro, por exemplo, o pré-candidato à Presidência da República ofendeu indígenas, mulheres, homossexuais e refugiados, além de fazer ataques de cunho racista contra quilombolas. “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”[1].

 

No ano de 2021, já eleito presidente da república, depois de afirmar que estava vendo uma barata na cabeça de um apoiador com cabelo estilo black power, se defendeu dizendo que:

 

“Jamais esperava estar aqui. Já ouviram falar isso daí. A imprensa toda contra, os mais variados rótulos. O que mais pegou foi o racismo e a gente demonstra aí que não existe isso para mim. Até digo, né, somos todos iguais. Sempre questionei a questão de cotas. Acho que a cota eleva o homem pela cor da sua pele como subalterno ao outro de cor de pele diferente. Somos iguais. O meu sogro é o Paulo Negão.”[2]

 

Importante destacar que, na mesma declaração em que procura negar a existência das diferenças, por meio da afirmação “somos todos iguais”, o presidente mobiliza conceitos racializados, capazes de identificar a “diferença” no Outro (o meu sogro é o Paulo Negão) e fazer desaparecer a sua própria diferença, já que não se refere a si como branco. Assim, ao mobilizar a retórica de que não enxerga diferenças entre as pessoas, mesmo tendo sido capaz de reconhecer o sogro “negão”, Bolsonaro se posiciona contrário às políticas diferencialistas, criadas e implementadas com o objetivo de garantir direitos iguais aos diferentes.

 

Enganam-se, no entanto, aqueles que acreditam que as posições contrárias à manutenção das políticas com recorte racial no sistema de ensino e nos concursos públicos brasileiros, sejam iniciativas exclusivas de lideranças brancas ligadas ao bolsonarismo que, opondo-se à mobilidade social da população negra, identificam nas Ações Afirmativas ameaças à manutenção de seu status quo. O caso do deputado Hélio Lopes, também filiado ao PSL e facilmente heteroidentificado[3] como homem de cor preta, é emblemática. Crítico das políticas de cotas para a população negra e ávido defensor do presidente Bolsonaro, especialmente diante das diversas acusações de racismo, Hélio Lopes incorporou à sua campanha política de 2018 o slogan “minha cor é o Brasil”. Ao imprimir o referido slogan em camisetas de cor verde e amarela, Hélio Bolsonaro (como passou a se identificar), ao mesmo tempo em que reconhece a “sua própria cor”, procura se vincular a uma cor aparentemente cega às cores: a cor do Brasil. Deste modo, busca reforçar a mesma idéia mobilizada por Jair Bolsonaro (a de que somos todos iguais), mas, neste caso, a partir do reconhecimento de sua própria cor.

 

No contexto do bolsonarismo, de maneira geral, e do governo Bolsonaro, de modo específico, as posições ambíguas em relação à questão racial, responsáveis pela negação do racismo e pela oposição às políticas de promoção da igualdade racial, se vinculam ao que Sueli Carneiro nomeou, durante a Audiência Pública sobre constitucionalidade das ações afirmativas, de projeto passadista de nação (Jesus, 2011). Segundo ela, “sonhar com a continuação da pretensa democracia racial brasileira é aqui a expressão da nostalgia de uma estrutura social que assegura, a tal ponto, o conforto de uma posição branca dominante, que o branco e só ele pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa”(Idem, 241).

 

Importante enfatizar, no entanto, que a defesa do Mito da Democracia Racial no Brasil, feita por aqueles que se opunham às cotas raciais ao longo da década de 2000 e reeditada pelo “mito” Bolsonaro, e seus seguidores bolsonaristas, não é uma invenção do século XXI, já que as narrativas em torno das indistinções raciais estiveram nas estruturas de construção do Brasil moderno.

 

“O Mito, no sentido utilizado neste texto, não se refere à uma realidade falseada, mas sim à narrativa sobre uma determinada realidade.  O Mito da Democracia Racial, erigido no Brasil no inicio do período de modernização (década de 1930), aos poucos se vinculou aos interesses de garantir as bases de coesão nacional, favorecendo aquilo que Gilberto Freire chamou de “equilíbrio de antagonismos”, se arraigando como um discurso nacional. Neste sistema que contribuía para equilibrar os conflitos, o mestiço passa a desempenhar um papel estratégico, já que sendo a síntese das diferenças, pode existir sem ser nenhum de seus pontos de origem. O mestiço, neste sentido, não é, necessariamente, uma realidade concreta, produto de ancestrais racialmente distintos. O mestiço torna-se, assim, a expressão do projeto nacional moderno: uma nação racialmente indiferenciada! A ambiguidade das relações étnico-raciais no Brasil, todavia, se expressa na afirmação de uma sociedade racialmente indiferenciada, mas que, de modo ambíguo, mantém o branco como ideal que não se pode, mas, que de modo inconfessável, se deseja alcançar”. (Jesus, 2021, p. 45).

 

De acordo com Fernando Henrique Cardoso, em seu artigo Livros que inventaram o Brasil, as análises feitas por Gilberto Freire, em seu livro Casa Grande e Senzala, foram fundamentais para a construção desta imagem idealizada e narcísica do Brasil e da mestiçagem.

 

“A estrutura de Casa grande e senzala é uma estrutura simples, a oposição é clara também. O “nós” que se forma é o “nós” que está baseado na casa grande e na senzala, nas raças formadoras, e se opõe aos outros, que não são assim. Não é o holandês quem vai plasmar o Brasil: não poderia; é o português, porque o português conseguiu essa amálgama com o negro que permitiu a individualidade da civilização brasileira, criando uma identidade redefinida miticamente por Gilberto Freyre. E criou uma identidade que fez com que o leitor, ao lê-la, não a rejeitasse. Não se trata de um espelho horroroso, para mostrar uma cara que nós não gostaríamos de ter. Será um espelho narcisista, como o próprio autor, aliás, sempre foi. Quem o mirar achará que nossa cara é bela e gostosa de ser vista”. (Cardoso, 1993, 25).

 

Como procurei mostrar até aqui, as crenças em torno da inexistência de raças e do racismo no Brasil, sustentadas no Mito da Democracia Racial, tem influenciado a formação das identidades individuais dos brasileiros, bem como do ideário de nação moderna desde a década de 1930. Embora possamos observar que, desde a emergência midiática de Jair Bolsonaro entre 2011 e 2013, os argumentos contra-cotas raciais se fortaleceram entre seus apoiadores, plasmando em muitos aspectos os argumentos apresentados à exaustão durante a primeira década do século XXI, é importante sinalizar que foi a vitória eleitoral de Bolsonaro, em 2018, que possibilitou que os discursos ambíguos sobre o racismo e sobre relações raciais se transformassem em políticas de governo.

 

Neste sentido, a nomeação do jornalista Sérgio Camargo para a Presidência da Fundação Cultural Palmares, em Novembro de 2019, representou uma transição estratégica entre representações nostálgicas sobre a nação brasileira e a implementação de alternativas políticas cegas à cor, em consonância com o projeto conservador construído para a pátria brasileira. Sérgio Camargo, que se apresenta no instagram como “Presidente da Fundação Cultural Palmares, Negro de direita, antivitimista, inimigo do politicamente correto, livre”, não poderia ocupar um posto mais estratégico para a implementação do projeto conservador reeditado pelo governo Bolsonaro. No dia 24 de Julho de 2021, escreveu no Twitter que “cotas raciais precisam acabar no Brasil. Geram ressentimento e estimulam fraudes. São, na prática, uma forma de racismo. Cotas devem ser para estudantes de baixa renda, com qualquer tom de pele, desde que estudiosos. Somos um povo super miscigenado. Somos um só povo[4]

 

De modo ambíguo, assim como é o racismo no Brasil[5], avalio que Sérgio Camargo foi escolhido, não apenas para preservar (manter intacta, sem mudanças) a cultura negra e valorizar a história das manifestações culturais e artísticas negras no Brasil, mas para ser uma das principais vozes contra as cotas raciais e contras as políticas dirigidas à população negras. Preservar o passado e se opor ao futuro! Ao usar seu lugar racial de homem negro para expressar o “conforto de uma posição branca dominante”, Sérgio Camargo contribui para fortalecer um projeto passadista que não enxerga sua cor, mas que se orgulha de ter entre seus defensores um homem (de cor) negro que defende a retórica do “somos todos iguais”.

 

Também de modo ambíguo, ao mesmo tempo em que a retórica do “somos todos iguais” se fortalece na era Bolsonaro, os dados sobre violência letal contra jovens negros, os índices de desemprego e situação de rua e os indicadores de analfabetismo entre a população negra seguem altos e com tendência ao aprofundamento. Por outro lado, pastas governamentais como Secretaria Nacional da Juventude (SNJ)[6], Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)[7] e Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI)[8], criadas com o objetivo de enfrentar situações históricas de exclusão e desigualdade sócio-raciais, e que em outros governos construíram relações de diálogos constantes com movimentos sociais e intelectuais anti-racistas, foram extintas e/ou totalmente desarticuladas.

 

Em menos de quatro anos vimos a destruição completa de políticas públicas com recorte racial, que demoraram, pelo menos, trinta anos para se estabeleceram na agenda pública e começarem a ser implantadas e implementadas no Brasil. Negacionista! É assim que será (ou deveria) ser lembrado um governo que, a despeito das evidências sobre as distinções raciais, sobre o racismo e sobre as desigualdades raciais no Brasil, faz opção por negar as evidências e contribui para a perpetuação do racismo que, de modo também contraditório, nos conduz a um futuro que se assemelha muito com o nosso passado escravocrata.

 

Notas

[1] Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro-e-acusado-de-racismo-por-frase-em-palestra-na-hebraica/ Acessado em 18 de fevereiro de 2022.

[2] Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/05/4923113-bolsonaro-volta-a-negar-racismo-e-diz-sempre-questionei-a-questao-de-cotas.html Acessado em 18 de fevereiro de 2022.

[3] A heteroidentificação racial consiste na associação de características fenotípicas à determinados grupos sociais. Trata-se de comportamento bastante presente nas relações sociais no Brasil. Recentemente, tais procedimentos passaram a ser adotados como procedimento complementar às auto-declarações raciais para ingresso em universidades e concursos públicos via Ações Afirmativas (Jesus, 2021, ).

[4] Publicado originalmente no dia 24 de julho de 2021, o post de Sérgio Camargo não está mais disponível no endereço https://mobile.twitter.com/sergiodireita1/status/1419076518647529472 , já que a conta do presidente da Fundação Palmares foi removida da plataforma após uma publicação com ofensas dirigidas à Mouse, congolês Mouse Kabagambe brutalmente assassinado no Rio de Janeiro. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/sergio-camargo-chama-moise-de-vagabundo-e-e-alvo-de-nova-acao-para-deixar-o-cargo/ Acessado em 18 de fevereiro de 2022.

[5] Em entrevista concedida ao Jornal da Universidade, editado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Nilma Lino Gomes afirmou que “o Brasil vive um racismo ambíguo; é aquele preconceito que vai se afirmando através da sua negação”. Disponível em https://www.ufrgs.br/jornal/educacao-contra-o-racismo/ Acessado em 18 de fevereiro de 2022.

[6] A secretaria nacional de juventude foi criada em 2005 com a intenção de promover pesquisas e diagnósticos sobre a juventude brasileira. Inicialmente esteve vinculada a Secretaria de Governo da Presidência da República e em 2015 foi anexada ao Ministério das Mulheres, da Igualdade racial e dos direitos humanos, na gestão do governo Dilma. No ano de 2015, a SNJ lançou o Plano Juventude Viva para reduzir a vulnerabilidade dos jovens em situações de violência física e simbólica. A iniciativa priorizou 142 municípios com os maiores índices de homicídios de jovens. O Plano busca também aprimorar a atuação do Estado no enfrentamento ao racismo institucional e na sensibilização dos agentes públicos. Para saber mais, acesse: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/igualdade-etnico-racial/acoes-e-programas-de-gestoes-anteriores/programas/PlanoJuventudeVivaUmlevantamentohistrico.pdf Acessado em 18 de fevereiro de 2022.

[7] A Secretaria Especial de políticas de promoção da Igualdade racial foi criada em 2003, no primeiro ano do governo de Luis Inácio Lula da Silva, com o desafio de “promover a redução das desigualdades raciais no Brasil. Em 2015, com a reforma ministerial, a SEPPIR passou a fazer parte do Ministério das Mulheres, da Igualdade racial e dos direitos humanos e foi responsável pela na implantação de políticas de enfrentamento ao racismo e preconceito, além de muitas iniciativas interministeriais. Para saber mais acesse: https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/igualdade-racial/seppir-promovendo-a-igualdade-racial-para-um-brasil-sem-racismo Acessado em 18 de fevereiro de 2022.

[8] A Secretaria de Educação a Distância, Alfabetização e Diversidade (Secad) é um órgão componente da estrutura administrativa do Ministério da Educação (MEC) e foi criada no ano de 2004, durante a gestão do ministro Tarso Genro, ministro da primeira gestão de Luis Inácio Lula da Slva. No campo das relações raciais foi responsável por uma série de iniciativas de formação de professores, produção de material didático para o cumprimento da lei 10.639/03 e acompanhamento das políticas de ações afirmativas no ensino superior brasileiro. Para saber mais, acesse: https://periodicos2.uesb.br/index.php/reed/article/view/8149 Acessado em 18 de fevereiro de 2022.

 

Referências Bibliográficas

CARDOSO, Fernando Henrique.  Livros que inventaram o Brasil. Novos Estudos Cebrap, 3, 1993.

GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira, (1985). O silêncio: um ritual pedagógico a favor da discriminação racial. Um estudo acerca da discriminação racial nas escolas públicas. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG.

JESUS, Rodrigo Ednilson. Ações afirmativas, educação e relações raciais: conservação, atualização ou reinvenção do Brasil? UFMG FAE. 2011.

JESUS, Rodrigo Ednilson. Autodeclaração e heteroidentificação racial no contexto das políticas de cotas: quem quer (pode) ser negro no Brasil? In: SANTOS, Juliana Silva; COLEN, Natália Silva; JESUS, Rodrigo Ednilson (Orgs). Duas décadas de políticas afirmativas na UFMG: debates, implementação e acompanhamento. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, v.9 p.125-142. 2018.

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Rodrigo Jesus
Graduado em Ciências Sociais, mestre em Sociologia e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Entre 2019 e 2020 realizou o pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, investigando o tema Ações Afirmativas, Heteroidentificação racial e identidade nacional no Brasil. Atualmente é coordenador da linha de pesquisa Educação, Cultura, Movimentos Sociais e Ações Coletivas no Programa de Pós-graduação em Educação da UFMG e presidente da Comissão Permanente de Ações Afirmativas e Inclusão Social da UFMG.