Leon Victor de Queiroz Barbosa
A teoria descritiva da separação de poderes, cujo pioneirismo é atribuído a Montesquieu (1748), tem evoluído significativamente, tendo sido repensada por James Madison em seus artigos federalistas de 1788 e ganhou debates mais robustos em 1989 com Juan Linz analisando os percalços do presidencialismo e as virtudes do parlamentarismo. Em 2000 foi a fez de Bruce Ackerman estabelecer uma análise mais empírica do que deveria ser uma nova separação de poderes, publicado na Harvard Law Review.
A diversidade institucional dos tempos atuais é um grande obstáculo à sustentação de teorias descritivas como as de Montesquieu. Como asseverou Elinor Ostrom (2005), entender instituições é um esforço sério, em que ela e seus colegas têm feito há décadas e ainda assim, se dizem não totalmente satisfeitos, por conta do problema da diversidade. Para eles, a diversidade institucional é o núcleo do problema para entender instituições. Em suas próprias palavras “o maior problema em entender instituições está relacionado à diversidade das situações da vida contemporânea” (Ostrom, 2005, p. 21). Os desenhos institucionais sobre os poderes presidenciais variam fortemente e vão desde os checks and balances do Congresso dos Estados Unidos aos poderes legislativos do Executivo Federal brasileiro. Das discussões de Linz sobre a capacidade de resolutibilidade do parlamentarismo e os problemas dos impasses no presidencialismo, das definições de Lijphart sobre os arranjos do modelo majoritário e do consensual, entender o funcionamento das instituições políticas não é trivial. Aliás, conseguir compreender quando essas instituições estão funcionando ou perecendo é um desafio para a Ciência Política uma vez que, até agora, não há nenhuma escala que mensure o funcionamento das instituições. O máximo que politólogos conseguem chegar é comparar para que uma determinada instituição foi criada e como está sendo de fato usada.
A miséria generalizada (corrupção descontrolada, pobreza extrema, saúde e educação exclusivas) ajuda a abrir as portas do populismo, onde soluções fáceis para problemas complexos hipnotizam populações mergulhadas na assimetria informacional e banhadas pelo desespero, principalmente em democracias débeis. Entender como as democracias sucumbem é entender como funcionam e quais as capacidades das instituições em resistirem aos desafios que a democracia nos impõe. Como Pierre Rosanvallon expõe “Descrevendo o advento de um mundo democrático do qual era testemunha, Alexis de Tocqueville notava: ‘A noção de governo se simplifica: apenas o número faz a lei e o direito. Toda política se reduz a uma questão aritmética’. Seria necessário dizer exatamente o contrário hoje” (Rosanvallon, 2021, p. 336). Rosanvallon (2021, p. 336) finaliza: “[…] vale lembrar que a democracia é, antes de tudo, o regime que não cessa de se interrogar. É ao preço desse esforço e dessa lucidez que o projeto populista poderá perder sua atração”.
O Brasil tem um passado não orgulhoso de evolução institucional com rupturas não democráticas, desde a proclamação da República forças militares têm governado o país em períodos distintos e com desenhos institucionais distintos. Na primeira república, 23% dos presidentes da República foram militares. Após o Estado Novo, o primeiro presidente eleito no período democrático foi o militar Eurico Gaspar Dutra. Antes do golpe militar de 1964 o Brasil havia tido 25 presidentes, dos quais 4 eram militares. Na nova redemocratização de 1988, dos 30 presidentes (eleitos, não eleitos, em exercício por motivo de impedimento do titular), 9 haviam sido militares. Em 2018, pela segunda vez (Eurico Gaspar Dutra foi o primeiro) um militar é eleito Presidente da República. O contexto favorecia a hipnose das soluções fáceis para problemas complexos, pois nos anos anteriores os escândalos de corrupção do Partido dos Trabalhadores foram expostos à exaustão nas principais mídias do país, dando a falsa sensação de erosão das instituições políticas, chegando a se propagar a falsa notícias de que o Brasil poderia ter o mesmo destino da Argentina ou Venezuela caso o partido que governou o país de 2003 a 2016 vencesse as eleições, mesmo que durante sua gestão isso jamais tivesse minimamente próximo de acontecer.
No ideário popular brasileiro, um presidente forte é um presidente sem limites, ou seja, sem o sistema de freios e contrapesos (checks and balances), o que contraria a própria ideia de democracia, pois a capacidade legiferante plena com uma única eleição é característica do sistema parlamentarista, como bem observou Ackerman (2000). No sistema presidencialista o poder é compartilhado entre o Executivo e Legislativo em sua maioria e com o Judiciário em situações excepcionais. A questão é: o que é uma exceção? Desde 2019 o Chefe do Executivo brasileiro vem produzindo exceções tanto na radicalização dos discursos como em atitudes que levaram ao inevitável confronto com as demais instituições políticas, remodelando suas relações e impondo aos pesquisadores uma séria e profunda análise das implicações desses conflitos para o arranjo democrático do país.
Em um arranjo institucional democrático presidencialista o Executivo submete suas ações ao crivo do Poder Legislativo, mesmo com poderes legislativos, as medidas provisórias perdem eficácia se não forem aprovadas pelo Congresso em 120 dias. O que se observa desde 1º de janeiro de 2019 é uma resistência em aceitar os limites institucionais do jogo democrático, que de início encontrou reverberação popular. O Congresso Nacional, buscando não entrar diretamente no conflito, tangenciou diversos embates, se limitando por vezes a notas de repúdio, sendo necessário que outro freio do sistema de freios e contrapesos fosse acionado: O Judiciário.
Instituição política que é, cuja análise seminal de Robert Dahl (1957) buscou entender melhor como juízes podem elaborar políticas públicas, a Suprema Corte brasileira estava em um processo de transição. Desde “O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido” crítica de Baleeiro e Pedroso (1968), às onze ilhas supremas (termo que especifica o grau de autonomia decisória que os onze integrantes da suprema corte tem), o Supremo Tribunal Federal ainda buscava entender o seu papel quando derrubou a proibição de coligações, quando encarcerou os principais atores políticos do partido no poder (escândalo do Mensalão), quando proibiu o financiamento empresarial de campanha, passando pelo casamento homoafetivo, a utilização de células tronco para pesquisas e autorização de aborto por condição anencéfala. Nesse sentido, a Suprema Corte se surpreende com uma retórica autocrática e a tentativa de mais autonomia do Executivo ao conseguir inocular o controle legislativo. Nesse sentido, o STF (que por estar no Judiciário, se submete ao princípio da inércia) se viu diante de um paradoxo: como proteger a democracia violando um princípio constitucional?
O princípio da inércia processual e da proibição de agir ex officio se aplica perfeitamente a juízes e tribunais locais, mas entra em conflito com a própria ideia de uma Suprema Corte em que no limite protege a democracia dela própria e até submete a Autoridade Eleitoral Nacional (TSE) a amarras de juízes de primeiro grau. Essa incoerência institucional levou críticas contundentes a essas duas cortes quando assumiram o papel de protagonistas na produção de limites ao Executivo, ficando claro que o princípio da inércia havia se deslocado para outras instituições como o Congresso Nacional.
A base de dados do Varieties of Democracy (VDEM) tem uma variável específica que mede os ataques do governo ao Judiciário (Government attacks on judiciary). Em uma escala de 0 (os ataques são diários ou semanais) a 4 (não há ataques à integridade do Judiciário) é notório que a partir de 2019 o Brasil passou a despencar no índice que na década de 2000 ficava próximo a 4, como mostra o gráfico a seguir.
Fonte: elaboração própria usando a ferramenta do v-dem.net em: http://v-dem.net/data_analysis/VariableGraph/
A cada frustração, um ataque à Suprema Corte, e foram várias as frustrações. A criminalização da homofobia foi uma delas. Juristas criticaram a decisão argumentando que o STF não pode legislar. Mas o Executivo vem alterando o Estatuto do Desarmamento, que é uma lei, pela via de decretos. No Direito Constitucional Brasileiro se convencionou tratar os poderes com suas funções típicas e atípicas. O Judiciário teria como função típica julgar, e como atípicas a administrativa (autogestão) e legislativa (autorregulação). Já o Executivo teria como função típica a administração e como atípicas a judicante (como os tribunais administrativos) e legislativa. Entretanto, a função legislativa do Executivo brasileiro está longe de ser atípica, pois não se limita à autorregulação, e sim à capacidade legislativa do Presidente da República (tema bastante estudado por Shugart e Carey, 1992). No desenho institucional brasileiro o Presidente da República tem poderes legislativos típicos, porém limitados. E o Judiciário, notadamente a Suprema Corte está dentro de um sistema de justiça em que princípios constitucionais, sejam explícitos ou implícitos, são válidos como norma superior, estruturante. Dessa forma, a Suprema Corte brasileira tem a mesma capacidade inovadora que a Suprema Corte dos Estados Unidos, a mesma que criou a própria capacidade de revisão judicial através do julgamento do caso Marbury vs. Madison.
Se o Executivo pode legislar e a Suprema Corte pode inovar na Ordem Jurídica, não tardaria para que fortes embates se desenvolvessem quando um Presidente da República passasse a não aceitar os limites de atuação do cargo. Dos embates à descriminalização das drogas à criminalização da homofobia, a Suprema Corte brasileira chegou ao mais baixo patamar do indicador de ataques governamentais ao Judiciário em 2020, ano em que se iniciou a pandemia e que trouxe conflitos entre o Executivo Federal, que menosprezou a doença e os Executivos Estaduais, diretamente responsáveis pelas suas respectivas populações, que viam os hospitais lotados e não tinham os meios necessários para organizar a quarentena que a situação exigia, desencadeando um forte conflito federativo resolvido pelo STF a favor dos governadores, apesar ser competência da União “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” (art. 21, XVIII da Constituição Federal).
Para além das questões da calamidade pública provocada pela pandemia da COVID-19, o próprio STF de ofício instaurou inquérito policial ainda em 2019 para investigar os ataques contra a própria Corte, sem a necessidade de participação da Procuradoria Geral da República. O desgaste lhe rendeu mais ataques, o que culminou com uma série de investigados, um deputado federal preso e um editor de blog foragido. As repetidas derrotas na Suprema Corte levaram o Presidente da República a protocolar, pela primeira vez na história, um pedido de impeachment de um membro da Corte.
Do ponto de vista científico afirmar que as instituições estão funcionando ou estão em colapso é retórica. Do ponto de vista analítico-interpretativo é possível ver resiliência institucional uma vez que, apesar dos discursos e atitudes, boa parte das instituições vem cumprindo com o seu papel. Apesar da perda de qualidade da democracia, mensurada por diversos índices, e exponho aqui novamente o indicador de democracia liberal do Varieties of Democracy no gráfico abaixo,
Fonte: elaboração própria usando a ferramenta do v-dem.net em: http://v-dem.net/data_analysis/VariableGraph/
O Brasil segue resistindo às tentativas de diminuição dos limites do Executivo, contrariando as expectativas de que viriam do Legislativo, mas pela via Judicial, que no Brasil sempre foi empoderada pelas elites políticas (Barbosa, 2015; Barbosa e Carvalho, 2020) e que agora se vêem limitadas pela Justiça, uma vez que os juízes muitas vezes julgam contra quem os indicou (Helmke, 2004).
ACKERMAN, Bruce (2000). The New Separations of Power. Harvard Law Review, vol. 113, n. 3, pp. 633-729.
BALEEIRO, Aliomar; PEDROSO, José. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968
BARBOSA, Leon Victor de Queiroz (2015). O Silêncio dos Incumbentes: fragmentação partidária e empoderamento judicial no Brasil. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Pernambuco.
BARBOSA, Leon Victor de Queiroz, CARVALHO, Ernani (2020). O Supremo Tribunal Federal como Rainha do Jogo de Xadrez : fragmentação partidária e empoderamento judicial no Brasil. Revista de Sociologia e Política, vol. 28, n. 73, pp. 1-22.
DAHL, Robert (1957). Decision-making in a democracy: The Supreme Court as a national policy-maker. Role of the Supreme Court Symposium, n. 1, 279-295.
HELMKE, Gretchen (2004). Courts Under Constraints. Cambridge University Press.
OSTROM, Elinor (2005). Understanding Institutional Diversity. Princeton University Press.
ROSANVALLON, Pierre (2021). O Século do Populismo, história, teoria, crítica. Tradução Diogo Cunha. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades Editorial.
SHUGART, Matthew, CAREY, John (1992). Presidents and Assemblies – Constitutional Design and Electoral Dynamics. Cambridge University Press.
SARTORI, Giovanni (1994). Comparative Constitutional Engineering. Macmillan Press.