POSTS

A ruína do consenso de Washington: Trump, tarifas e a estratégia do Brasil

Pedro Feliú

Desde o término da guerra civil nos EUA (1861-1865) até o início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Washington costumeiramente aplicava tarifas comerciais ou para proteger a indústria infante ou para angariar recursos. A ascensão internacional dos EUA ao posto de potência tornou a prática tarifária obsoleta, e o país passou a promover o livre comércio como um dos pilares da ordem global. O impressionante avanço do capital financeiro do país, impulsionado por empréstimos durante as guerras mundiais e o uso internacional do dólar tornaram o déficit comercial dos EUA tolerável e, muitas vezes, desejável. Há muitas décadas a balança comercial norte-americana apresenta vultuosos déficits comerciais, atingindo aproximadamente 900 bilhões de dólares em 2024. A arquitetura econômica liberal, renomeada de Consenso de Washington após a queda da União Soviética, está em ruínas. O padrão ouro-dólar foi substituído pelo padrão dólar-dólar, a Organização Mundial do Comércio perdeu relevância e os acordos bilaterais de livre comércio e entre blocos regionais proliferaram em detrimento da abertura comercial multilateral. A eleição de Donald Trump (2017-2021; 2025 – presente) duas vezes é mais um duro golpe na combalida ordem econômica internacional patrocinada pela Casa Branca. O isolacionismo na política externa dos EUA ressurge das cinzas do século XIX, com uma nova retórica anti-globalista e a utilização de tarifas comerciais como instrumento de barganha. Neste novo cenário protecionista da presidência de Trump, quais possíveis impactos podemos vislumbrar para o Brasil? Qual estratégia o país deve adotar?    

Em primeiro lugar, temos o impacto a curto prazo das tarifas no comércio brasileiro. Um dos alvos do republicano é a China, com a adoção, em março de 2025, de 20% de imposto sobre todas as importações do parceiro asiático. Quando o presidente Trump aplicou tarifas sobre a China em 2018, fomentando uma guerra comercial não revertida pelo acordo de 2020, a percepção econômica foi de maior impacto negativo na China quando comparado aos EUA. O cenário pode se repetir com as novas tarifas de 2025, escalando a competição tarifária. Pequim já implementou tarifas no setor agrícola norte-americano, entre 10% e 15% em 2025, com especial reflexo na soja, milho e algodão. Esse elemento pode beneficiar o agronegócio brasileiro. No primeiro mandato de Trump, um dos efeitos das tarifas impostas foi o desvio da compra da soja dos EUA para o Brasil, aumentando significativamente a compra do produto brasileiro por Pequim. Esse seria um primeiro efeito positivo no curto prazo da guerra comercial promovida por Trump em 2025. 

Ainda no curto prazo, as tarifas anunciadas por Trump sobre produtos, independente do país exportador, prometem reduzir significativamente as exportações brasileiras de aço e alumínio, cujo mercado norte-americano é o mais importante. O presidente republicano anunciou a medida para abril de 2025, abrindo algum espaço para negociação, como ocorreu na sua primeira administração, em que cotas de aço foram estabelecidas sem a incidência de 25% de tarifa de importação. O Canadá, outro país alvo das tarifas de Trump, anunciou retaliações tarifárias aos produtos norte-americanos, promovendo a reação da Casa Branca em ampliar a tarifa para 50% no caso do aço e alumínio canadenses. Até o momento da redação deste texto, o Canadá voltou atrás e está em plena negociação com os EUA. Esse pode ser um possível cenário em breve para o Brasil. As idas e vindas dos decretos tarifários de Trump reforçam a percepção bastante difundida entre analistas da função negociadora das tarifas, ou seja, o governo americano impõe um custo para seus parceiros, obrigando-os a negociar e ceder aos EUA para evitar o prejuízo comercial. A ideia central de Trump com as tarifas é reduzir o déficit comercial do país, assim como proteger empregos em setores decadentes da indústria norte-americana e ainda recuperar produção industrial no território do país. Evidentemente o custo inflacionário, a possibilidade de desabastecimento de insumos para outras importantes atividades econômicas e a pressão do agronegócio dos EUA serão importantes empecilhos para o triunfo e continuidade da política iniciada no primeiro ano do segundo mandato de Trump. De qualquer forma, a simples ameaça de tarifas já prejudica o planejamento de investimento do setor no Brasil, diminuindo a propensão de expansão da produção. Esse seria um efeito negativo imediato para economia brasileira, cuja política retaliatória sofre resistência no Itamaraty.    

Do ponto de vista dos efeitos a longo prazo na estratégia de inserção internacional do Brasil, fica cada vez mais evidente a baixa expectativa de retornos satisfatórios em um possível alinhamento ou aproximação com Washington. Duas estratégias principais dominaram a agenda brasileira internacional: o alinhamento com o EUA ou a busca pela diversificação de parcerias, também chamada de universalismo. Enquanto o primeiro significa importar as preferências dos EUA para o topo da agenda brasileira em troca de benefícios da potência, o segundo demanda um investimento diplomático para expandir a influência para países com pouca relação com o Brasil. Em alguns momentos da história do Brasil a aproximação com o EUA rendeu bons frutos, como no reconhecimento da independência, na consolidação das fronteiras e, principalmente, no envio de tropas na Segunda Guerra Mundial. Após a ascensão hegemônica dos EUA, contudo, o Brasil passou a ser preterido por Washington em sua lista de parcerias preferenciais, gerando frustrações com os benefícios advindos do alinhamento à potência. Por exemplo, o governo Bolsonaro alinhou a política externa brasileira aos EUA de Donald Trump (2017-2021) e não obteve ganhos suficientes face aos custos que o país assumiu para acompanhar o posicionamento norte-americano. Assim, há décadas, ganhou força a perspectiva da universalização das parcerias, uma vitória do pragmatismo sobre o americanismo na agenda brasileira, impulsionando a aproximação com países fora do eixo de alianças dos EUA. Uma percepção corrente na literatura especializada é o atingimento de um teto nas relações do Brasil com os países desenvolvidos, também chamado de Norte Global, restando ao Sul Global o espaço possível de expansão da influência brasileira. Ganha destaque o incremento das relações com países como China, África do Sul, Rússia, Índia, Turquia e Irã, cuja cooperação com Brasília aumentou significativamente entre os anos 2000 e 2015. Assim, no começo do século XXI, aumentar relações com o sul global não foi excludente da manutenção de boas relações com o norte global, possibilitando a expansão da diplomacia brasileira em escala global.

Contudo, de 2015 adiante, após a invasão russa da Crimeia, a supremacia da segurança na agenda internacional, somada ao acirramento da rivalidade entre os EUA e China reduziram as possibilidades de um país com as características do Brasil projetar protagonismo. A opção de alinhamento à China também não parece ofertar suficientes benefícios, principalmente na projeção de possíveis custos caso as duas principais potências intensifiquem a disputa pelo poder global. Recentemente, por exemplo, o presidente Trump declarou preocupação com a relação próxima entre a China e Brasil, indicando uma mudança na tolerância norte-americana perante a autonomia brasileira.

Certamente a China é uma importante fonte de investimento externo direto e capital para o Brasil, um mercado consumidor gigante e oferece apoio diplomático para Brasília em distintos fóruns internacionais. Esses aspectos positivos são suficientes para Pequim habitar o topo das prioridades brasileiras. Ainda assim, alguns aspectos negativos dessa relação também apontam para a direção da neutralidade e diversificação de parcerias. A pauta exportadora brasileira com os EUA inclui bens manufaturados, com a China, ainda que mais volumosa, predominam commodities agrícolas. Para impulsionar a exportação de bens manufaturados, a China não parece ser a melhor opção no globo. Os distintos valores de Brasil e China acerca da democracia também pode ser um empecilho para um aprofundamento das relações bilaterais. Recentemente, a atuação diplomática dos EUA foi muito importante para evitar um golpe de estado no Brasil em 2023, apesar de 1964 não ser esquecido. A China, tradicionalmente, reconhece a legitimidade de governos não democráticos, como os casos recentes da Venezuela e Myanmar. Não virá do gigante asiático o apoio internacional à democracia brasileira, fato que infelizmente foi importante para evitar a quebra de regime. No meio ambiente, embora não seja tarefa fácil atrair recursos norte-americanos para a proteção das florestas, a China nem menciona essa possibilidade em seu discurso diplomático. 

Nesse difícil cenário internacional, o investimento diplomático em diversificar ao máximo as parcerias do Brasil pode mitigar efeitos negativos da competição global entre as potências e, principalmente, aprimorar a posição de barganha do país. A neutralidade e a disponibilidade de recursos nacionais para uma expansão calculada na diplomacia brasileira se apresentam como a melhor opção de inserção internacional para o Brasil. Uma dependência elevada com os EUA, como demonstraram os casos recentes do México e Canadá, é um risco que o Brasil aprendeu a não assumir. Inverter a moeda para a China, como faz a Venezuela, por exemplo, também parece oferecer maiores custos do que benefícios. A estratégia atual adotada pela Índia, calcada na neutralidade e proximidade com ambas as potências, aliada a um forte investimento na consolidação de uma liderança regional parece ser o melhor caminho para o Brasil.

O Mercosul precisa ser revitalizado, assim como os espaços regionais alternativos à OEA (Organização dos Estados Americanos), fortalecendo a liderança do Brasil na região. Para isso ocorrer, o Brasil precisa estar disposto a arcar com os custos da liderança, comumente revertidos em benefícios materiais ofertados aos vizinhos. Esse sempre foi um elemento ausente na América do Sul, diferente com que ocorreu na Europa com a Alemanha. O Brasil precisa empreender esforços para concluir os acordos comerciais em curso, principalmente entre Mercosul e União Europeia, mas também entre o bloco e o Canadá, Japão, Cingapura e Coreia do Sul, possibilitando o resgate da relevância do Mercosul para as economias dos países membros e ampliando as opções comerciais. As recentes tarifas impostas pelos EUA e o aumento das tensões geopolíticas em escala global propiciam à diplomacia brasileira consolidar uma posição de neutralidade em relação às potências, ofertando mediação por meio de uma liderança regional fortalecida.

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Pedro Feliú
Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e coordenador do POLEN (Política Externa em Números). Pesquisa na área de análise de política externa.