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Um retrato de 2024: direita cresce, centro e esquerda recuam ainda mais  

Carlos Ranulfo Melo

Um dos assuntos que tem permeado a discussão no período posterior às eleições municipais é a (quase) ausência de uma polarização nacional nas disputas. Em função disso tornou-se comum afirmar que as forças de centro foram as que se saíram melhor nas urnas. O fato de PSD e MDB terem sido os partidos que conquistaram o maior número de prefeituras parece reforçar o argumento. Não é bem assim.

Para início de conversa, não seria mesmo de se esperar que as eleições fossem marcadas pela polarização nacional, marcante desde 2018. Afinal o que estava em jogo eram as prefeituras e os inúmeros problemas que afetam o dia a dia dos cidadãos. Ao contrário de alguns governadores, os “padrinhos” Lula e Bolsonaro tiveram influência apenas residual na votação. É certo que o ex-presidente aproveitou o tempo livre e rodou o país às custas do caixa do PL. De vez em quando topava com o PT, mas enfrentou também o Podemos, o PSD, o União, o MDB e por aí vai.

O PT, até por cautela, não saiu para medir forças. Foi comedido no lançamento de candidaturas e buscou sempre que possível alianças no interior da base do governo no Congresso. Só mesmo em São Paulo, Lula buscou enfaticamente reeditar a disputa de 2022.

Por fim, é preciso qualificar melhor o espaço político em que, nos dias de hoje, se desenrola a competição partidária no Brasil. A polarização entre petistas e bolsonaristas não remete, como por má fé ou desconhecimento se tornou comum dizer, a um conflito entre posições situadas nos extremos ideológicos. Se a turma do ex-capitão deve ser qualificada como extrema-direita, o PT há muitos anos – desde que Lula convidou José de Alencar (então no PL) para a chapa de 2002 – optou por moderar suas posições e aproximar-se do centro.

É fato que desde 2018 o nível de polarização política no Brasil chegou a níveis sem precedentes, mas o emprego desavisado do termo acaba servindo para confundir – basta ver as análises sobre o resultado das eleições divulgadas na imprensa que tratam o PSD (em especial) e o União, que se abstiveram no segundo turno das eleições de 2022, como legendas de centro. Até mesmo o PP, um dos mais notórios partidos de direita do país é colocado nesse rol pelo GPS partidário da Folha de São Paulo. Depois é tudo embalado como centrão e ninguém sabe do que se está falando.

No Brasil, as eleições presidenciais de 2018 e 2022 alteraram dramaticamente a dinâmica do sistema partidário ao modificar a estrutura da competição pelo Executivo federal, seus protagonistas e suas estratégias.  A disputa pela Presidência da República deixou de se dar entre coalizões de centro-esquerda e centro-direita e passou a ter como um de seus protagonistas o que, na falta de uma designação mais adequada, se convencionou chamar de bolsonarismo. Na ausência de partidos relevantes situados nas posições mais extremas à esquerda e diante da perda de competitividade dos tradicionais partidos de centro, o sistema partidário brasileiro passou por um notável deslocamento provocado pelas posições assumidas pela extrema direita.

Um sistema partidário é mais do que um ajuntamento de partidos; o que o caracteriza é o padrão de interação entre as organizações que o compõem. É preciso ter em mente o funcionamento do sistema para entender por que, apesar da maior proximidade ideológica, o PSDB não participava das coalizões articuladas pelos governos petistas enquanto o PP era bem-vindo. Os partidos definem suas estratégias tendo em vista a de seus competidores e a competição PT versus PSDB era o que estruturava o sistema partidário brasileiro.

O surgimento de uma extrema direita dotada de expressiva e mobilizável base social, amparada por grandes bancadas no Congresso e, como acabamos de constatar, capaz de eleger um número considerável de prefeitos, modificou por completo a dinâmica do sistema partidário. Se antes os partidos de direita gravitavam em torno do centro (no caso, do PSDB), hoje estão sob a força de atração da extrema direita que, diga-se, opera com desenvoltura também entre o que restou dos partidos de centro, como demonstram as candidaturas do MDB em São Paulo, Porto Alegre e Boa Vista, ou a do PSDB em Campo Grande nas recentes eleições.

Uma vez que a competição pelo governo central passou a se dar entre posições moderadas situadas à esquerda e extremadas postadas à direita, o ponto equidistante entre os partidos que encabeçam a disputa deslocou-se, assim como todo o sistema, para a direita. Em outros termos, o centro métrico, não necessariamente ideológico, do sistema partidário passou a ser compartilhado por partidos da direita “tradicional”. Se nas gestões petistas anteriores era o MDB que se apresentava como o “fiador da governabilidade”, no atual governo esse papel foi incialmente assumido por PSD e União – como o comportamento das duas bancadas não fornecia segurança a Lula, foi necessário anexar também o PP e o Republicanos. Nem por isso esses partidos deixaram de estar ideologicamente à direita.

Uma análise de votações importantes realizadas na Câmara dos Deputados nos dois primeiros anos de Lula 3 fornece evidências quanto a isso. Na votação de temas que dividiam ideologicamente a coalizão governista – marco temporal, direitos de ocupantes de terra, saída temporária de presos, uso de agrotóxicos, população LGBT ou disseminação de fake news – houve pouca diferença no comportamento dos quatro partidos de direita mencionados acima. Enquanto 88% da bancada do PSD votava contra o governo, nas bancadas do PP, do Republicanos e do União 97,7%, 96,3% e 96,1% dos deputados e deputadas faziam o mesmo. Mesmo nas votações de questões econômicas (arcabouço fiscal, ICMS e reforma tributária) ou naquela que definiu a estrutura do Ministério, onde se esperava um comportamento mais coeso da base governista, o PSD se mostrou mais próximo do PP do que do PT: enquanto nenhum petista votou contra o governo, no PSD e no PP 22,5% e 34,5% assim o fizeram.

Dito isso, é possível retornar ao ponto inicial deste artigo. Os partidos de direita, em seu conjunto, foram os grandes vitoriosos nas eleições municipais deste ano. Os gráficos a seguir levam em conta os campos ideológicos (Direita: PFL/DEM/UNIÃO; PP; PL; PSD; Republicanos, Podemos, PTB, PSC, além de outras pequenas legendas. Centro: MDB; PSDB; Cidadania, PV, Solidariedade, Avante e Mobiliza. Esquerda: PT, PSB, PDT, Psol, PCdoB e Rede) e ilustram a afirmação ao mesmo tempo em que permitem uma comparação com resultados das eleições municipais desde 2000. 

O primeiro gráfico mostra os dados para o conjunto dos municípios brasileiros. O segundo reduz o universo de análise levando em conta somente as cidades com mais de 200 mil eleitores.  

Elaboração própria com base em dados do TSE, Agência Senado e jornal O Globo 

O gráfico fala por si. Partidos de direita e de centro apresentam desempenho semelhante até 2016. O quadro começa a mudar em 2020 quando o MDB venceu em 786 municípios, muito abaixo das 1037 conquistas de 2016, e o PSDB despencou de 803 para 521 vitórias. Agregados, os partidos de centro recuaram de 39,5% para 31% das prefeituras. Em 2024 perderam mais terreno, ganhando em apenas 25,2% dos municípios.

Os partidos de esquerda mantiveram a trajetória ascendente até 2012 quando venceram em 26% dos municípios. Em 2016 a curva se inverteu puxada pela queda do PT que perdeu quase 60% das prefeituras conquistadas na eleição anterior. No total a esquerda venceu em 20%, 14,7% e 13,2% das prefeituras nos anos de 2016, 2020 e 2024 respectivamente. Nesse último ano, PT e PSB melhoraram seu desempenho, mas o número de vitórias do PDT caiu. Do outro lado, os 5 maiores partidos de direita tiveram ganhos expressivos relativamente a 2016. Republicanos e União (comparado ao antigo Democratas) tiveram crescimento mais forte: 330% e 220% respectivamente. PL, PSD e PP aumentaram suas prefeituras em 75%, 64% e 51%. Em 2024, a direita venceu em 61,5% dos municípios, algo absolutamente inédito na história recente do país. 

O segundo gráfico mostra apenas o resultado nas cidades que, em função do tamanho de seu eleitorado, tiveram ou poderiam ter tido um segundo turno. Nesse caso, a vitória da direita aparece em cores ainda mais fortes. 

Elaboração própria com base em levantamento feito pelo PODER 360 e dados disponibilizados pelo G1 sobre a eleição de 2024 

Nos primeiros anos da série as trajetórias se mostram distintas daquelas vistas no gráfico anterior. Até a eleição de 2016 os partidos de direita haviam conseguido seu maior número de vitórias em 2000 (24,3%) e apresentavam o pior desempenho entre os três campos. A esquerda, por sua vez, disputou a dianteira com o centro até 2012 e chegou a liderar por três eleições consecutivas, sempre com mais de 40% de prefeituras conquistadas. 

A partir de 2016, o quadro se assemelha ao apresentado no gráfico anterior. A direita inicia uma forte trajetória ascendente; ultrapassa o centro em 2020 (46,6% contra 40,8%) e chega à respeitável marca de 71,8% das prefeituras sob seu comando em 2024. Centro, com 18,4%, e esquerda, com 9,7% dividem o que sobrou na eleição deste ano. O MDB ainda manteve um bom desempenho, com 12 vitórias nos maiores municípios, atrás apenas do PL (16), PSD (15) e União (14). O PSDB conquistou 5 prefeituras, muito longe das 28 de 2016. Na esquerda o quadro é pior. O PT foi de 28 vitórias em 2008 para 6 em 2024. PSB e PDT tampouco foram bem – duas prefeituras cada um. Um recorte para as capitais mostra um quadro semelhante: enquanto a direita vence em 18 delas (69,2%), o centro conquista 6 e os partidos de esquerda ficam com Recife (PSB) e Fortaleza (PT).

É incontestável que a direita se saiu melhor nas urnas, feita a ressalva de que a maior parte dos bons resultados deve ser creditada à sua ala, pode-se dizer, mais moderada. O PL se saiu muito bem nos maiores municípios do país, mas em apenas uma das 4 capitais onde o partido venceu – Cuiabá – o prefeito eleito é um bolsonarista “raiz” – candidatos com esse perfil foram derrotados em Belém, Curitiba, João Pessoa, Manaus, Palmas, Fortaleza, Goiânia, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.  

Mas independente de quem seja o vitorioso no campo da direita, os resultados de 2024 – e aí deve-se incluir a eleição de 57,2% dos vereadores pelo país a fora – vem se somar às evidências que apontam para uma significativa mudança no cenário político nacional. Em 2022 os partidos de direita conquistaram 13 dos 27 governos estaduais em disputa, seu melhor desempenho desde 1990. Elegeram também 53% dos deputados estaduais. E no Congresso passaram a deter mais de 60% dos mandatos em cada uma das casas. No que se refere às instituições eletivas, não resta dúvida que o Brasil virou à direita.

No frigir dos ovos, encontra-se em curso uma intensa luta pelos rumos do país e as forças progressistas estão diante de um cenário ruim. O ciclo de avanços democráticos e civilizatórios aberto pela constituição de 1988 perdeu força e a possibilidade de retrocessos se mantém. A vitória de Lula em 2022 estancou a deterioração democrática, mas não foi suficiente para virar o jogo. Em 2023 o bolsonarismo esteve acuado pela reação ao 08/01, pelas prisões de auxiliares de Bolsonaro e pelos processos abertos contra o ex-presidente. Mas em 2024 retomou a iniciativa e a maior evidência disso está na facilidade com que o projeto de anistia aos golpistas ganhou espaço na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara entre partidos do centro e da direita “tradicionais”. 

As máquinas eleitorais da direita planejam uma colheita ainda melhor em 2026. Afinal continuarão largamente beneficiadas pela absurda transferência de recursos públicos via emendas parlamentares e contarão com um exército de prefeitos e vereadores bem maior do que seus competidores ao centro e à esquerda na batalha pelo voto.

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Carlos Ranulfo Melo
Carlos Ranulfo Melo é doutor em Sociologia e Política pela UFMG e foi professor titular do Departamento de Ciência Política até se aposentar. É pesquisador do Centro de Estudos Legislativos e membro do Observatório das Eleições.