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Candidaturas de mulheres nas eleições 2024: muito aquém da igualdade democrática

Danusa Marques

Quando tratamos dos problemas de desequilíbrio de presença entre grupos sociais no acesso à representação política, muitas perguntas vêm à tona: se a maior parte dos postos de poder é historicamente ocupada por homens brancos, em sua maioria ricos e proprietários, sem deficiências, que correspondem à cisheteronormatividade, provenientes das altas rodas, como promover a inclusão de representantes de grupos historicamente marginalizados? Como pluralizar a política? Como garantir que a democracia se construa nas instituições políticas? Como garantir que, em um sistema político democrático, realmente todo mundo tenha o mesmo valor e peso político?

Desde a fundação da ciência política, o poder é entendido como algo baseado no campo da virilidade, ou seja, da própria qualidade de ser homem – como na obra de Maquiavel, para quem a fortuna, imprevisível, é uma mulher, como nos lembra Pitkin. Desde suas bases, a modernidade tratou o mundo dicotomicamente e a política como algo do campo da masculinidade, quase como se fosse uma característica natural do poder. Ainda que há décadas a área de gênero e política tenha se dedicado a desestabilizar as certezas fundacionais desta disciplina, é comum que a sub-representação das mulheres e o modelo cisheteronormativo sejam encarados como padrão desejado da política profissional, como se fosse um dado providencial, imutável, insuperável e, portanto, naturalmente justo. Mas, em política e em ciência política, estas mesmas bases nos mostram que o poder é construção humana, portanto os resultados do processo de tomada de decisão são responsabilidade da agência dos atores envolvidos.

Como o Brasil é marcado pela exclusão política colonial que o funda, não surpreende que o Estado brasileiro, as suas instituições e as organizações que em torno dele orbitam sejam enviesadas pelas condições excludentes na disputa pelo poder. Seria surpreendente que quem sempre esteve no controle destes espaços voluntariamente se retirasse, fosse convencido de que a justiça igualitária é o melhor caminho, de que a democracia é melhor para a coletividade, de que a redistribuição de poder é urgente. A regra política realista indica que tudo está em disputa, e assim podemos compreender o que está colocado em campo na competição eleitoral local, sob um contexto histórico de desigualdade, opressão e marginalização no qual os atores que controlam as posições de poder buscam a sua manutenção perpétua.

Hoje o Brasil ocupa a vexatória pior posição entre os países da América Latina na presença de mulheres nos Parlamentos do ranking da Interparliamentary Union, nº 134 do mundo (entre 190 países), com 17,5% de mulheres na Câmara dos Deputados. Em um momento em que a região implementa paridade eleitoral, já numa segunda onda de difusão de políticas afirmativas para a igualdade de gênero, o Brasil segue vivendo um contexto de desdém pela eleição de mulheres. Este desprezo vem dos principais agentes atravessadores da política eleitoral – os partidos políticos. Desde a implementação das medidas afirmativas de gênero, em 1995, os partidos estrategicamente operaram brechas para que nada mudasse na regulação da competição eleitoral, à revelia da mudança na letra da lei ou de sua interpretação legal.

Os partidos brasileiros, marcados por dilemas relacionados à capacidade de controle centralizado da agremiação e pela tendência de grande parte deles em se dirigir a partir do clientelismo, são majoritariamente controlados por homens em posições sociais privilegiadas. Como nos mostram os estudos sobre partidos, o controle da organização pelo seu grupo majoritário passa prioritariamente pelo controle dos seus recursos, dentre os quais o recrutamento político é uma dimensão central de disputa. Para se entender quem importa em um partido, é preciso observar não só o registro das candidaturas, mas também o apoio, envolvimento e investimento da organização. Isto define grande parte das chances de uma carreira eleitoral de sucesso, refletindo a importância daqueles quadros para o partido. 

Partidos são diferentes entre si e mostram padrões de recrutamento variados. Em média, partidos de direita recrutam candidaturas mais individualizadas, cujo capital político depende mais do próprio indivíduo selecionado; enquanto partidos de esquerda recrutam pessoas com carreira partidária mais longa, com o capital atrelado à própria organização. Estas interpretações, no agregado partidário, fazem sentido e indicam que há muitas diferenças entre os partidos se os compararmos por ideologia. Mas, neste agregado, é comum que percamos uma dimensão importante e definidora das chances eleitorais da candidatura: não importando o partido, em todos eles as mulheres têm, em média, baixas chances de vencer a eleição. 

Quando se observam os dados gerais, percebe-se que nas eleições municipais de 2024 o crescimento do número de mulheres eleitas foi pequeno (2,2 p.p. para a vereança), muito aquém da paridade e infelizmente dentro do esperado para o contexto brasileiro:

*Número de prefeitas eleitas em 2024 ainda está em aberto, dado que haverá segundo turno em 51 municípios. Há participação de mulheres em 18 deles.

Fonte: a autora, a partir de dados do TSE.

Os dados mostram que não houve novidades marcantes. Não passamos por modificações importantes na legislação eleitoral, nem no sistema partidário, ou tampouco na capacidade de controle público dos partidos. Se este ritmo não desacelerar ou retroceder, levaremos mais 52 anos (13 eleições), nas eleições de 2076, para chegarmos à paridade nas Câmaras de Vereadores/as do país. Para as prefeituras, levaria um pouco mais de tempo: 37 eleições, ou seja, 148 anos. Pode ser que tenhamos 50% de prefeitas, talvez, em 2172. Apenas a título de comparação, podemos dimensionar essa distância para o passado: há 148 anos, em 1876, enquanto o Imperador do Brasil Pedro II testava o telefone inventado por Graham Bell na Exposição Universal na Filadélfia, não contávamos com nenhuma prefeita ou parlamentar, ou nem mesmo com uma república.

A dimensão racial deixa a análise da situação das mulheres na política brasileira mais complexa. Nos resultados das eleições municipais de 2024, homens brancos estão fortemente sobre-representados. Eles são 21,0% da população, mas ocuparão 42,3% das cadeiras nas Câmaras de Vereadoras a partir de 2025. Esta diferença de 21,3p.p. representa uma sobre-representação de 101,4%, maior do que o dobro da proporcionalidade, sendo a expressão da sólida vantagem que este grupo social segue construindo quando se trata de concentração de recursos de poder no Brasil.

Preenchimento sólido: eleitos/as para vereança 2024. Preenchimento pontilhado: população brasileira.

N cargos de vereança disputados em 2024: 58.191.

N população: 203.080.756 habitantes. 

*Foram excluídos da análise registros de candidatura de pessoas indígenas, amarelas e cuja raça/cor não foi informada, assim como os percentuais de população autodeclarada indígena e amarela, para concentrar a comparação nos dados nos grupos de cor/raça majoritários.

Fonte: a autora, a partir de dados do TSE e do IBGE.

Pessoas negras, que correspondem a 55,4% da população brasileira, foram eleitas para 45,8% das cadeiras. No entanto, este número é concentrado nos homens negros (autodeclarados pretos e pardos), que concentram 38,3% das cadeiras de vereança conquistadas em 2024. Assim, homens negros também estão sobre-representados em 47,5%, com pouco mais de 10 p.p..

A sub-representação feminina, evidente nos dados expostos no Gráfico 2, se dá de maneira acentuada. Entre mulheres brancas, que são 22,3% da população, foram conquistadas 10,6% das cadeiras de vereadora – uma distância de 11,7 p.p., ou seja, de cerca de metade da proporcionalidade populacional. Mas o controle do gênero por grupos raciais escancara a desvantagem avassaladora das mulheres negras nas eleições brasileiras. Ainda que mulheres negras sejam o maior grupo populacional do Brasil, correspondendo a 28,0% da população, elas conquistaram somente 7,4% das cadeiras da vereança em 2024. Sua sub-representação é da dimensão de 20,6 p.p., ou seja, quase quatro vezes menor do que a proporção deste grupo populacional.

É importante analisar estes dados simultaneamente por gênero e raça, a fim de que o quadro da sub-representação de grupos na política brasileira seja entendido de uma forma mais sistemática e integrada. Sim, todas as mulheres são sub-representadas na política local brasileira. Mas há desigualdade interna a este grupo, que não pode ser tratado nas análises e nas políticas públicas como um agregado uniforme. São as mulheres negras, o maior grupo populacional do país, aquelas que mais vivenciam padrões de exclusão política, que têm maior dificuldade em se eleger, que sistematicamente enfrentam as piores condições de competitividade nas eleições e, portanto, no acesso aos cargos eletivos no país.

A vereança é a porta de entrada na política eleitoral. É claro que as pessoas candidatas podem ter uma importante trajetória política prévia, seja no ativismo social ou mesmo em posições institucionais no Estado, na forma de cargos não-eletivos, comissionados etc. Mas, na carreira eleitoral, ser vereador/a significa um passo importante de construção de carreira política e isso tem uma relevância especial na profissionalização política. Nos espaços parlamentares, afinal, se dá a socialização política de uma parte considerável da elite política brasileira. Para seguir nesta carreira com sucesso, é preciso mediar a sua construção com as prioridades dos partidos políticos aos quais estão filiados/as/es.

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Fonte: a autora, a partir de dados do TSE e do IBGE.

A exclusão feminina na carreira política eleitoral brasileira é consistente, permanente e escandalosa, e praticamente toda ela está sob a responsabilidade dos partidos. Como o Gráfico 3 nos mostra, a sub-representação das mulheres, principalmente as negras, é transversal ao sistema partidário brasileiro. O padrão de exclusão feminina é, infelizmente, consistente em todos os partidos. As portas fechadas às mulheres, em especial às mulheres negras, significam imediatamente a exclusão dos seus pontos de vista no processo deliberativo e nas políticas a serem adotadas por estes corpos legislativos. Mas significam também um padrão, uma continuidade de um sistema político fundado na exclusão, no domínio e na opressão. Sabemos que resultados eleitorais expressam, muito mais do que o cômputo de votos do eleitorado que os legitimam, o investimento partidário naquela candidatura. O boicote sistemático e contumaz dos partidos às candidaturas das mulheres, mais agudamente no caso das mulheres negras, é um sinal de que seguem trabalhando ativamente pela desigualdade e injustiça.

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Danusa Marques
Professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL/UnB), credenciada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Flora Tristán (IPOL/UnB) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre as Mulheres (NEPeM/CEAM/UnB).