Juliane Bento e Virginia Vieira
Quais as razões que explicam o comportamento dos eleitores de Porto Alegre no segundo turno da disputa pela Prefeitura Municipal? Com 23 pontos de vantagem na intenção de voto, vem se desenhando de forma consistente a permanência no cargo do atual prefeito, Sebastião Melo (MDB). Conforme a pesquisa de opinião mais recente, divulgada na terça-feira 15 pelo instituto Paraná Pesquisas, Melo é favorito para vencer a disputa: na pesquisa estimulada, com apresentação dos nomes dos concorrentes, Melo tem 56,8% das intenções de voto, contra 33,6% da deputada federal Maria do Rosário (PT).
Tal cenário, no entanto, desafia a compreensão por situar-se a menos de cinco meses da maior tragédia socioambiental vivida pela cidade, que afetou diretamente mais de 160 mil habitantes, quase 40 mil edificações, inundou mais de mil quilômetros de vias públicas, 160 escolas municipais, 44 escolas estaduais e mais de 100 estabelecimentos privados de ensino, 31 unidades de saúde e 22 hospitais, segundo dados contratados à empresa Codex pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus).
Ainda que os efeitos da calamidade climática tenham sido mais intensamente sofridos por moradores de bairros vulneráveis de Porto Alegre, por ordem de número de pessoas atingidas, Sarandi, Farrapos e Região das Ilhas, deram vitória ao candidato incumbente já no primeiro turno das eleições municipais. Mais do que isso, a divisão da votação no primeiro turno por regiões mostra amplo domínio de Melo: o candidato à reeleição venceu nas 10 zonas eleitorais da cidade nessa primeira etapa do pleito.
O segundo lugar ficou com Maria do Rosário em nove das dez zonas eleitorais e teve o percentual mais próximo ao de Melo na 1ª zona, que inclui a região das Ilhas e a área central de Porto Alegre. A petista ficou com 34,89% dos votos nessa divisão e Melo com 41,26%. Essa parte da cidade foi uma das mais afetadas pela inundação de maio. Nas demais regiões atingidas pela enchente, como Humaitá, demais bairros do 4º Distrito e Sarandi, Melo venceu com maior folga.
Embora esforços tenham sido feitos durante a campanha eleitoral por adversários de Melo na tentativa de responsabilizá-lo pela omissão no enfrentamento aos impactos da tragédia climática, igualmente a situação rendeu ao candidato oportunidades retóricas de atribuir ao Governo Federal, do partido de sua oponente no segundo turno, o desgaste político por eventual demora na prestação de auxílio financeiro e estrutural.
Merece menção, ainda, a ampla aliança partidária de centro-direita forjada em torno do candidato incumbente, considerando que o MDB de Melo está coligado com PP, Republicanos, PL, PSD, Podemos, Solidariedade e PRD desde o primeiro turno, com adesão do PSDB do Governador Eduardo Leite e do Partido Novo endossando sua reeleição no segundo turno.
A rede de colusões e apoios a Melo consiste também em estratégia eficaz de ancoragem territorial e relativa presença nos bairros, estimulada desde a gestão municipal passada, em que a valorização de lideranças locais na condição de interlocutoras autorizadas e reconhecidas pela Prefeitura foi incentivada. Os prefeitos de praça ilustram bem esse movimento. A realização de audiências públicas nas regiões de orçamento participativo (ainda que a política tenha sido esvaziada) e transmitidas via Youtube aproximavam, tanto simbólica quanto politicamente, esses espaços urbanos periféricos das autoridades públicas locais e da própria figura de Melo.
Tal presença nas regiões periféricas da cidade, no entanto, é implementada conforme a recente gramática política dos territórios inovadores, segundo a qual a inclusão social ocorre por incremento tecnológico, promoção de auto emancipação via iniciativas empreendedoras e, consequentemente, a perspectiva de que o poder público funciona melhor quando não intervém e atrapalha a vida dos cidadãos. A opção política pelo esvaziamento da política é retórica que adere no eleitorado da capital com maior número de abstenções no último domingo de votações: 31,5% dos porto-alegrenses aptos a participar do primeiro turno não compareceram a suas sessões eleitorais.
Com efeito, o resultado deste 1º turno também refletiu um desgaste da oposição que foi representada por Maria do Rosário (PT): a candidata não agradou os eleitores que procuravam uma alternativa ao atual prefeito, o que pode ser verificado pela sua grande rejeição, ultrapassando os 53% segundo a última pesquisa supracitada, e pelo desempenho de Juliana Brizola (PDT) na reta final da campanha do 1º turno, com a diferença de apenas 50 mil votos entre as candidatas, além da grande abstenção.
A atipicidade das eleições porto alegrenses não foram capazes de contrariar a tendência nacional, considerando o recorde de reeleição de prefeitos, com 81% de vitória a aqueles que concorreram ao pleito, demonstrando a hegemonia das atuais gestões municipais em detrimento da oposição, mesmo em um cenário de grave calamidade pública e constante responsabilização da atuação da prefeitura frente às falhas de sistemas de prevenção e escoamento das águas do Guaíba. No fim, este domínio permitiu a mudança do animus do eleitorado durante os meses posteriores à catástrofe, permitindo a quase reeleição de Melo já em 1º turno.
Informações de militantes da oposição, que circulam dentro da estrutura de campanha de Maria do Rosário, sugerem “já ter sido vitória ir ao segundo turno”, considerando o desfavor da conjuntura em Porto Alegre. Para além do estigma a que a candidata restou associada, desde que sua biografia foi capturada em um dos episódios de violência misógina do então deputado federal Jair Bolsonaro, também é verdade que sua associação à agenda da proteção aos direitos humanos torna sua candidatura preterida diante de um cenário de desconfiança com pautas progressistas, negacionismo dos consensos históricos e de revisionismo sobre direitos conquistados.
Para além do primeiro lugar porto alegrense na taxa de absenteísmo nacional e da rejeição à Maria do Rosário, por 53% dos eleitores pesquisados na referida enquete, importa pôr em perspectiva outro fator, de menor pessoalidade. Se do final dos anos 1980 ao começo dos 2000 Porto Alegre era a capital mundial da democracia participativa, haja vista seu pioneirismo globalmente reconhecido e replicado em torno do orçamento participativo, onde a população experimentava práticas cotidianas de tomada de decisão partilhada com o poder público, e das reedições do fórum social mundial, quando a cidade recebia, divulgava e debatia iniciativas e práticas alternativas ao centralismo político e à dominação e reprodução econômicas, esse léxico acumulado parece ter sido propositalmente apagado da memória política da cidade.
Na figura abaixo, além da consistência da presença do Partido dos Trabalhadores no executivo municipal de Porto Alegre até 2004, o que mais fica explícito é justamente o veto ao PT nas eleições majoritárias locais desde então, mesmo nos períodos em que seria possível e eventualmente vantajoso o alinhamento político com os níveis estadual e federal.
Fonte: elaboração própria (2024)
Se o legado de certo predomínio progressista na história política de Porto Alegre parece esquecido do vocabulário político local, em seu lugar, acompanhando tendências nacionais em torno de um recente orgulho conservador e da valorização dos esforços individuais para ascensão social como medida de sucesso pessoal, o novo léxico que opera é aquele neoliberal. As trincheiras de ideias predominantes na cidade, oriundas de iniciativas coordenadas que reúnem empresários e organizações financiadoras de políticos de direita, funcionam mais como “sink tanks”, pela defesa da “eficiência” em detrimento da política, pela negação do debate racional-legal, pelo investimento no negacionismo climático, pela crítica à ciência e à produção de conhecimento pelas universidades públicas, etc. Para competentes mapeamentos dessas redes de conexões que invadem cargos comissionados de alto escalão na Prefeitura de Porto Alegre, vale a consulta a pesquisas recentes do Observatório das Metrópoles e do Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento, ambos da UFRGS.
Isso posto, o resultado das eleições proporcionais em Porto Alegre, que elegeu duas mulheres trans e a maior bancada do PSOL para a Câmara de Vereadores do município, em contraponto ao sucesso eleitoral do também eleito por coeficiente eleitoral Coronel Ustra (cuja plataforma de campanha consistia na apresentação de si como sobrinho do militar torturador), aponta para o ambiente politicamente conflagrado da cidade, ainda que povoado de abstenção.
A tensão política que paira sobre o segundo turno das municipais em Porto Alegre, portanto, supera eventuais desafios em torno de figuras históricas da esquerda, do trabalho político ao redor das consequências da calamidade e da saturação desinformada da agenda dos direitos humanos. Ela traduz, na verdade, o desafio essencial da luta política contemporânea: repolitizar a disputa política, restituir os sentidos políticos de um ambiente que se reivindica mais técnico e eficaz porque extirpado da tradição da competição partidária desde a redemocratização.