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PEC da Anistia e as Candidaturas Negras nas Eleições Municipais de 2024

Cristiano Rodrigues

O percentual de candidaturas negras para as eleições municipais subiu pela terceira vez desde que o TSE passou a exigir que os partidos incluíssem a cor/raça dos candidatos em 2014. Em 2024, 52,73% dos candidatos se declararam pretos ou pardos, ao passo que em 2020 esse percentual era de 50% e em 2016 47,75%. Apesar do avanço no número de candidaturas negras, elas seguem pouco competitivas, concentradas para a vereança e, com a promulgação da Emenda Constitucional 09/2023, correm o risco de perderem ainda mais sua já baixa viabilidade eleitoral.

A literatura especializada indica que a baixa competitividade das candidaturas negras reside especialmente em três fatores: socialização política não-institucional, baixa permeabilidade partidária e desigualdades no acesso a recursos e tempo de tv e rádio. Candidatas e candidatos negros costumam, de maneira geral, se profissionalizar politicamente no associativismo civil ou religioso e apenas tardiamente migrarem para a política institucional, fato que os coloca em desvantagem em relação aos candidatos brancos que,  em geral, tendem a possuir mais tempo na  política institucional e maior participação nas estruturas partidárias. 

Os partidos políticos também tendem a não ser permeáveis à participação de filiados negros na corrida eleitoral, fornecendo pouco espaço para que suas campanhas se profissionalizem. A exceção costuma ficar para os partidos pequenos, institucionalmente frágeis e/ou com pouco acesso a recursos do fundo partidário e do fundo especial de financiamento de campanha (FEFC). Além disso, a maioria das candidaturas negras se concentra na disputa para vereança, em que há menos disputa interna nos partidos e menor acesso a recursos. Nas eleições de 2024 65,5% dos partidos políticos apresentam mais candidatos brancos do que negros. O PCB é o partido com o maior percentual de candidaturas negras para a prefeitura (62,5% de 9 candidaturas) e o PL  apresenta o menor percentual de candidatos negros (26% de 1.483 candidaturas). 

Ademais, como os estudos sobre o tema revelam, acesso a recursos é o maior preditor de sucesso eleitoral de uma candidatura. Entretanto, candidaturas de negros e de mulheres não tinham, até recentemente, acesso garantido a recursos do FEFC. Quando passaram a ter, os partidos criaram barreiras adicionais, como postergar a distribuição de recursos para esses grupos, deixando para fazê-la próximo ao final do período eleitoral, inviabilizando assim o sucesso de tais candidaturas.

Nesse cenário, candidaturas de mulheres negras enfrentam ainda mais dificuldades. Pesquisa de Machado e colegas (2022) aponta que nas eleições municipais de 2020 as mulheres negras eram 17% dos postulantes ao cargo de vereador. Entretanto, apenas 11% dos recursos públicos foram alocados em candidaturas de mulheres negras. Já mulheres brancas receberam um ponto percentual a menos em relação ao número de suas candidaturas e homens negros receberam sete pontos percentuais a menos.

Ainda segundo pesquisa de Machado e colegas (2022), os fundos públicos de campanha representam mais de 50% dos recursos utilizados por mulheres negras e brancas nas eleições municipais. Para homens, esse valor é de aproximadamente 40%. Ao verificar o conjunto de vereadoras e vereadores eleitos, o acesso a fundos públicos apresenta um efeito em escada: para mulheres não brancas representou 39% da receita; para mulheres brancas, 29%; para homens não brancos, 23%; e para homens brancos, 15%. Esses dados demonstram que candidaturas de homens brancos têm maior capacidade de autofinanciamento e podem inclusive prescindir de recursos públicos em suas campanhas, pois conseguem acessar redes de financiamento privadas com valores superiores àqueles disponíveis para mulheres brancas e não brancas.

Algumas medidas com o intuito de incentivar a ampliação da representação de negros e mulheres foram tomadas. Em 2018 o STF decidiu que o financiamento de campanhas eleitorais deveria ser distribuído proporcionalmente, respeitando o limite mínimo de 30% para mulheres. Em 2020 o TSE decidiu que os partidos deveriam repassar obrigatoriamente recursos de campanha a candidaturas de pretos e pardos de forma proporcional – ou seja, de acordo com o número de candidatos com esse perfil. 

Em 2021, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 111/2021, alterando algumas regras eleitorais. A emenda inseriu na Constituição Federal dispositivos incentivando as candidaturas de mulheres e negros ao estabelecer que os votos dados a candidatas mulheres e a pessoas negras seriam contados em dobro para efeito da distribuição dos recursos do Fundo Partidário  e do FEFC nas eleições de 2022 a 2030.

Tais mudanças foram recebidas com otimismo por aqueles que denunciavam o déficit democrático causado pela subrepresentação de negros e mulheres na política brasileira, apesar de seus possíveis efeitos colaterais, como o aumento da reclassificação racial fraudulenta de candidatos em busca de recursos destinados a candidaturas de pretos e pardos.

Entretanto, a promulgação da Emenda Constitucional 09/2023, popularmente chamada de PEC da Anistia pode gerar retrocessos no esforço recente para ampliar a reprensentação política de negras e negros. A emenda constitucional autoriza o refinanciamento de dívidas de partidos contraídas nos últimos cinco anos, com isenção de multas e juros acumulados, além de perdoar as legendas que não cumpriram a regra de distribuição proporcional de recursos para as candidaturas de mulheres e negros nas últimas eleições. 

Além disso, enquanto a participação de candidaturas negras aumenta a cada eleição, ultrapassando os 50% neste ano, a EC 09/2023 reduz os recursos obrigatórios para essas candidaturas nas eleições futuras. Com a nova regra o percentual de recursos dos fundos eleitoral e partidário destinados a candidaturas negras passará de 50% para 30%. 

As novas regras já valem para as eleições municipais deste ano e geram um clima de incerteza em relação ao seu potencial em impactar negativamente a viabilidade eleitoral de candidaturas de pessoas negras, especialmente de mulheres negras. Se medidas alternativas para ampliar a inclusão de negras e negros na política não forem implementadas pelos partidos o retrocesso trazido pela PEC da Anistia dificilmente será revertido nos próximos anos.

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Cristiano Rodrigues
É doutor em sociologia pelo IESP-UERJ e professor do Departamento de Ciência Política da UFMG.