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O Fim da “Direita Envergonhada” e Ascensão da Nova Direita no Brasil

André Borges


Desde os protestos em favor do impeachment de Dilma Roussef em 2015 e 2016, assistimos a uma ampla reorganização da direita brasileira. Essa reorganização envolve a ascensão de lideranças, movimentos e partidos de orientação populista, além de crescente radicalização ideológica.  A transformação da direita brasileira reflete importantes mudanças na sociedade e na política, que incluem o crescimento das atitudes de desconfiança e rejeição generalizada aos partidos (antipartidarismo), a polarização do eleitorado, e a crescente saliência de temas culturais envolvendo direitos reprodutivos e LGBT, papéis de gênero e educação sexual entre o eleitorado.

Na coletânea Para Entender a Nova Direita Brasileira  (2023), eu e Robert Vidigal argumentamos que a direita brasileira  hoje é fundamentalmente diferente da direita dos anos 1990 e 2000. A nova direita é composta por forças políticas que emergem ou se reorganizam como parte de uma reação aos governos do PT durante as décadas de 2000 e 2010. A reorganização da direita também marca uma ruptura com respeito à direita tradicional porque as novas alternativas conservadoras possuem vínculos com movimentos e organizações da sociedade civil, sejam igrejas, think-tanks ou movimentos liberais de classe média.  Já a direita tradicional é composta majoritariamente por partidos catchall ou particularistas criados e/ou liderados por políticos profissionais. A direita tradicional se caracteriza ainda pela moderação ideológica, enquanto a nova direita adota posições mais extremas, seja defendendo pautas ultraconservadoras ou antissistema. 

A coletânea analisa não apenas o lado da oferta, enfocando novos partidos e movimentos de direita, mas também o lado da demanda. Parte do sucesso das novas alternativas de direita é reflexo do crescimento das atitudes antipartido e antissistema entre os eleitores brasileiros. Sucessivos escândalos de corrupção e uma severa contração econômica entre 2014-2016 contribuíram para a insatisfação generalizada com respeito aos partidos e às instituições representativas.

Na introdução da coletânea, argumentamos que a direita se reorganizou ao  longo dos últimos anos em torno de duas grandes tendências.  Primeiro, como resultado da politização crescente das identidades religiosas e de uma reação conservadora ao avanço de pautas progressistas, liderada pelo clero evangélico (SMITH, 2019). Se é verdade que a presença dos evangélicos na política eleitoral não é novidade, remontando à Assembleia Constituinte, a partir da década de 2010 a direita religiosa passa por importantes mudanças do ponto de vista organizacional e das estratégias programáticas. 

Até o início dos anos 2010, a atuação das igrejas evangélicas na arena eleitoral se caracterizava pelo pragmatismo e pela baixa consistência ideológica. As igrejas optavam por tirar vantagem do sistema eleitoral de lista aberta com elevadas magnitudes distritais para espalhar candidatos apoiados pelo clero entre vários partidos de diferentes orientações ideológicas.

Esse cenário de virtual ausência de polarização e baixa consistência entre as pautas dos políticos evangélicos e suas estratégias eleitorais se alteraria radicalmente a partir de uma série de mudanças de caráter progressista na legislação e nos valores da sociedade ao longo da década de 2010 (ex. legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo). Essas mudanças motivaram uma reação conservadora encampada pelo clero evangélico, o que se traduziu em uma atuação cada vez mais incisiva da bancada evangélica contra pautas progressistas no Congresso (QUADROS & MADEIRA , 2018). Além disso, grandes igrejas evangélicas se afastaram paulatinamente dos governos do PT, após terem apoiado as candidaturas de Lula em 2002 e 2006 e de Dilma Rousseff em 2010. 

O surgimento do outro ramo da nova direita está relacionado à organização de movimentos liberais e conservadores durante as crises econômica e política que levaram ao impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016 e ao descrédito de todos os grandes partidos. Boa parte desses novos movimentos de direita foram fundados por jovens ativistas que sentiam que suas ideias não eram adequadamente representadas em razão da hegemonia cultural da esquerda na academia e na mídia (ROCHA, 2021)

Embora pequenos inicialmente, movimentos como o MBL (Movimento Brasil Livre), Vem Pra Rua e Revoltados Online experimentaram rápido crescimento durante os protestos a favor do impeachment em 2015 e 2016 . Apesar das variações em suas agendas, os novos movimentos de direita que emergiram das crises econômica e política de 2014-2016 se aliaram à operação Lava Jato e a sua cruzada moralista contra a corrupção. Além disso, como Dias, Von Bulow e Gobbi  demonstram no capítulo 8 da coletânea, os movimentos liberais de meados dos anos 2010 partilham de uma mesma retórica populista, que divide o mundo político entre o povo virtuoso e uma elite corrupta, associada aos governos do PT.

Essa vertente da nova direita se caracteriza por sua postura anti-establishment, pela crítica aos partidos políticos e à política tradicional e pelo antipetismo virulento. Na arena político-eleitoral, ela encontra expressão em partidos como Novo e Podemos. A chamada direita antipolítica também engloba a direita populista radical, que se organizou em torno do projeto presidencial de Jair Bolsonaro em 2018 e que possui fortes raízes em grupos civis e militares saudosistas do regime militar .  Bolsonaro construiu sua 1ª campanha presidencial, em grande parte, sobre a condenação da “velha política” e sobre a defesa da família tradicional e dos valores cristãos, estabelecendo uma sólida aliança com a direita evangélica. Ele também mobilizou os sentimentos antipetistas dos eleitores, demonizando o partido e culpando-o pela corrupção generalizada e pela estagnação econômica. Ao longo do seu mandato (2019-2022) e durante a campanha pela reeleição, Bolsonaro estimulou atos antidemocráticos e colocou em dúvida a credibilidade das urnas eletrônicas, demonstrando, assim, a sua filiação ao projeto autoritário da ultradireita representado por líderes como Viktor Órban. Nesse sentido, o bolsonarismo evidencia as fronteiras pouco claras entre forças de direita radical, que questionam os valores da democracia liberal sem, no entanto, pregar a abolição por completo do regime democrático, quanto grupos extremistas, que defendem abertamente o uso da força para solapar a democracia. Assim, a experiência brasileira de radicalização da direita parece se adequar melhor ao conceito de ultradireita, que engloba tanto o radicalismo quanto o extremismo do lado direito do espectro ideológico (CARTER, 2018; PIRRO, 2023). A ultradireita populista, representada pelo bolsonarismo, difere de partidos como o Novo, e de movimentos de direita, na medida em que estes carecem de ligações orgânicas com as Forças Armadas além de não adotarem uma retórica abertamente iliberal e golpista.

A coletânea também contribui com uma análise sistemática da ascensão da direita populista radical (DPR) / ultradireita populista, enfocando tanto o perfil dos seus eleitores bem como as pautas e programas partidários. A partir das contribuições de Lucio Rennó, Robert Vidigal e Talita Tanscheit e Lisa Zanotti, os editores propõem uma definição de “bolsonarismo” para dar conta das especificidades da DPR no Brasil.  O bolsonarismo é definido como um movimento político  que se caracteriza:  i) por uma concepção autoritária da sociedade; ii) por uma visão populista do mundo político, assentada em narrativas e agendas antissistema e iliberais; iii) pela adoção de pautas ultraconservadoras, que envolvem a defesa dos valores tradicionais. A esses três elementos, agregamos um quarto ponto, comum a outros casos de emergência da direita populista radical na América Latina, que diz respeito à forte vinculação com os militares e forças de segurança.

Os capítulos da coletânea demonstram que o surgimento da nova direita brasileira está diretamente associado ao  crescimento da polarização afetiva, ou seja, à consolidação de identidades do tipo “nós-contra-eles”.  Esse movimento reflete o crescimento do antipetismo, que é elemento distintivo dos apoiadores das novas direitas religiosa e antiestablishment. Em seu  capítulo, Vitor Araújo demonstra que a rejeição ao PT é uma característica que diferencia os evangélicos pentecostais dos demais eleitores. Por sua vez, no capítulo 12, André Borges demonstra que o antipetismo foi um dos principais determinantes do voto na nova direita antiestablishment em 2018.

De modo geral, os capítulos da coletânea apontam claramente para uma mudança substancial no sistema partidário brasileiro e nos vínculos entre eleitores e lideranças e partidos de direita.  Partidos office-seeking, especializados em sustentar o governo de ocasião perderam espaço para forças conservadoras com vínculos com as igrejas e legendas anti-establishment. Nota-se ainda uma convergência ideológica (CARTER, 2018; PIRRO, 2023)entre os eleitores e os políticos da nova direita, o que sugere que a força eleitoral das novas alternativas conservadoras não pode ser reduzida à utilização de fake news e “câmaras de eco” nas redes sociais.  Se não é possível dizer que a direita fisiológica perdeu importância – vide o papel central desempenhado pelo “Centrão” no governo Lula III bem como no governo Bolsonaro – não há dúvida que forças mais programáticas ganharam muito em relevância. Ademais, a ascensão de forças de direita radical/extrema direita também indica uma ruptura com o passado recente. Diferente da “direita envergonhada” dos anos 1980 e 1990, que buscava se desvincular do passado autoritário, apresentando-se mais à esquerda do espectro do que as suas preferências efetivas de política pública pareciam indicar, o bolsonarismo traz de volta a glorificação da ditadura e o flerte com o golpismo e a desestabilização das instituições representativas. 

Onde parece haver certa continuidade entre a direita tradicional e a nova direita é na ausência de partidos sólidos capazes de aglutinar interesses e coordenar o conflito intra-elite. De fato,  as novas lideranças da direita têm mostrado pouco interesse em investir na construção de organizações partidária. Esse aspecto se evidencia, por exemplo, na ausência de um partido capaz de representar os evangélicos e na persistente fragmentação da bancada evangélica entre mais de uma dezena de partidos. Por outro lado, em que pese a ausência de partidos fortes, as novas direitas evangélica e antipolítica têm sido extraordinariamente bem-sucedidas em disputas eleitorais nacionais, estaduais e locais, e na construção de uma base social que reúne ativistas digitais, movimentos sociais e igrejas.

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

André Borges
André Borges, é Doutor em Ciências Política pela Universidade Oxford e professor associado do IPOL - Universidade de Brasília. Editou, juntamente com Robert Vidigal, a coletânea Para Entender a Nova Direita (Zouk, 2023). Atualmente coordena projeto de pesquisa sobre causas e consequências da polarização na América Latina.