Maria Dolores Silva
As mudanças climáticas ocupam lugar de destaque dentre as questões de interesse público global. No Brasil entrou no rol dos problemas urgentes a serem enfrentados desde que eventos climáticos extremos passaram a ser recorrentes, tais como as enchentes na região Sul do país, as secas na região Norte e as queimadas, problema crônico na Amazônia, que no ano de 2024 se espalham por todo país. Mundialmente, imagens sobre o derretimento de geleiras, furacões, enchentes e mortes em função de calor e de frio, mostram que os problemas não são isolados. A advertência de especialistas a respeito do aquecimento global não pode mais ser ignorada diante de temperaturas tão elevadas e suas consequências.
A centralidade das preocupações pelas mudanças climáticas pode ser observada na trajetória do ambientalismo mundial que, em seu limiar, debatia sobre a importância de conservar áreas naturais para deleite das gerações futuras e sobre a importância do manejo dos recursos naturais em substituição à exploração econômica predatória. Com quase um século de amadurecimento, na RIO 92 (CONUMAD) o foco foi o desenvolvimento sustentável, ganhando destaque o efeito estufa e o compartilhamento de responsabilidades pela destruição ecológica. Relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, desde a década de 1990, projetam um cenário de riscos para a humanidade em função de alterações climáticas globais.
Sob a repercussão do quarto relatório do IPCC, apresentado em 2007, o Congresso Nacional brasileiro aprovou a Política Nacional sobre Mudanças no Clima – PNMC (Lei nº 12.187-2009), oficializando o compromisso voluntário de redução de emissões de gases que provocam o efeito estufa, assumido durante a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. A PNMC definiu objetivos, diretrizes, instrumentos de gestão institucional e incentivos financeiros para a “compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático”.
Fonte: MCTI
Apesar da meta, referenciada nas projeções para o ano de 2020, ter sido alcançada, a contribuição do Brasil nas emissões pelo uso da terra e florestas (LULUCF) é bastante variável e chega ao final do período em alta. O agronegócio pressiona para avançar sobre a floresta e resiste aos controles ambientais.
A representatividade das emissões florestais justifica a atenção do ambientalismo à Amazônia e às mudanças no regramento legal. Em outros setores avaliados pelo IPCC, a Política de Resíduos Sólidos (nº 12.305/2010) ainda não logrou implementação completa pelos municípios brasileiros e a política de transição energética encontra-se em um caminho tortuoso onde há incentivos a termoelétricas e à exploração de petróleo.
A gravidade dos impactos ambientais no Brasil é denunciada a mais de meio século, apontando para os incentivos do Estado a um modelo de produção econômica que destrói ecossistemas. Entretanto, mesmo com a projeção global do ambientalismo na segunda metade da década de 1980 e com a consolidação do direito à proteção ambiental, a atenção pública ao problema é canalizada por catástrofes, como as queimadas, as inundações e a seca.
As mudanças climáticas no contexto da desregulamentação ambiental
Até que medidas de mitigação das mudanças climáticas impusessem sua urgência, o ambientalismo brasileiro demandava políticas de comando e controle e instituições capazes de redirecionar o modelo destrutivo de relação com a natureza e de melhorar a qualidade do meio ambiente. Um marco regulatório de amplo escopo foi criado, a partir das bases consistentes da Política Nacional para o Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) e da Constituição Federal de 1988, definindo punições, padrões e processos que previnam e reparem os danos ambientais. Bem antes das mudanças climáticas se tornarem evidentes cotidianamente, os compromissos assumidos internacionalmente e o ativismo ambiental pavimentaram a criação de um sistema regulatório para a proteção do meio ambiente.
Contudo, no Legislativo a regulamentação não passou sem controvérsias sempre que se apresentaram custos aos setores produtivos. Na votação da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/1998) parlamentares argumentaram que as determinações para as áreas de Reserva Legal e de Preservação Permanente iriam “engessar” as atividades econômicas rurais, especialmente na Amazônia. Mais de uma década depois esse mesmo posicionamento se apresentou durante a discussão do texto da Lei de Proteção à Vegetação Nativa (Lei nº 12.651/2012). Essa postura, que entende a legislação ambiental como entrave à produção, veio se fortalecendo com o crescimento da representação partidária de direita, cujos membros demandam flexibilização da legislação criada desde a década de 1990.
Vale destacar, que o descompromisso com o regramento ambiental não é interessante para o setor agrário-exportador. A despeito da afirmação de um negacionismo climático, liderado pelo governo Bolsonaro (2019-2022), a saliência mundial do aquecimento global é desfavorável a um desmantelamento radical da política ambiental. Para alguns setores políticos a flexibilização se alinha com a perspectiva de Majone (1990), que observa que a desregulamentação, às vezes se configura como uma re-regulamentação voltada para o alinhamento ao mercado global. Entretanto, a defesa de uma feição liberal para a legislação, demandando mecanismos de autoregulação, descentralização e incentivos à adesão a práticas sustentáveis, não deixa de enfraquecer os controles estabelecidos.
Além disso, propostas de mudanças mais radicais estão pulverizadas no Legislativo em projetos que propõem anistia a desmatadores, legalização da apropriação de terras públicas e de atividades de alto impacto, como a mineração, em unidades de conservação e terras indígenas. Cada mudança que crie janelas para atividades de impacto ambiental é uma ameaça, às vezes silenciosa, no Congresso Nacional, como mostram as propostas de lei, abaixo:
Fonte: Congresso em Foco
Cabe destacar, que o teor de uma proposta inicial costuma ser alterado no decurso da tramitação, o que recomenda observarmos o papel do relator dos projetos. A PEC 03/2022, de autoria de Arnaldo Jordy (Cidadania), foi relatada pelo Senador Flávio Bolsonaro (PL) e causou grande polêmica quando se tornou público que as praias públicas poderiam ficar inacessíveis aos cidadãos em função da privatização de terrenos que dão acesso às mesmas. O PL sobre licenciamento ambiental foi proposto pelo deputado Luciano Zica (PT), atuante em defesa do meio ambiente. Porém, no decorrer da tramitação foram acatadas modificações que inseriram na proposta a criação do Licenciamento Ambiental Autodeclaratório, pela internet, que dispensa comprovação de estudos de impacto ambiental.
A Lei de Proteção à Vegetação Nativa é foco de vários projetos visando dispensar obrigações de conservar e recompor a vegetação e canalizar incentivos financeiros do Programa de Regularização Ambiental para quem não é elegível. Tais propostas pavimentam a ilegalidade, enfraquecendo os controles ambientais de atividades de diferentes setores, contribuindo para intensificar as mudanças climáticas
Agenda conflitiva e cooperação entre Executivo e Legislativo
A legislação ambiental aprovada durante o período o democrático foi fruto de um processo cooperativo entre as lideranças parlamentares no Congresso e diversos presidentes, que acordaram urgência para propostas que tramitaram por longo tempo e fizeram acordos em pontos específicos de maior conflito. Em votação nominal de destaques da Lei de Crimes Ambientais a bancada do PMDB estava dividida, mas sua liberação foi coibida, com base em acordo com o governo para definir posteriormente o significado de ‘reserva legal’ e de ‘área de preservação permanente’. Na preparação da Política de Resíduos Sólidos o presidente Lula acompanhou o processo de elaboração da lei e fez advocacy em benefício dos catadores.
Já durante a votação da Lei de Proteção à Vegetação Nativa a anistia aos produtores que não recuperaram áreas desmatadas até 2008 foi aprovada contra a orientação da presidenta Dilma. Tal diferença no poder de influência do líder da coalizão de governo pode ser explicada pelo crescimento das bancadas partidárias de direita, comprometidas com o agronegócio, destacando-se em visibilidade a atuação da Frente Parlamentar da Agropecuária.
A partir do governo Bolsonaro, a liderança do presidente voltou-se para uma política de desmantelamento das políticas ambientais – propostas de grande impacto ambiental só foram freadas pela ação do ambientalismo em conexão com seus aliados no Congresso e na opinião pública. Mas, mudanças institucionais potencializaram a força do Legislativo, em tal contexto projetos polêmicos vieram a ser aprovadas no terceiro governo Lula – como a Lei Geral de Agrotóxicos (nº 14.785/2023) que simplifica processos de autorização.
Lula iniciou seu mandato com grandes expectativas a respeito das políticas ambientais, contrastando com o negacionismo do governo anterior. Entretanto, desde a formação da estrutura ministerial enfrentou resistências do “centrão” e teve que retirar atribuições do ministério do meio ambiente. Sua coalizão de governo é composta por partidos que se posicionam de forma oposta em decisões de políticas ambientais. O Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, também, enfrentou resistência aberta do chefe da pasta de Minas e Energia, que desafiou a ministra Mariana Silva quando da decisão contrária do IBAMA à exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. Tais episódios mostram que tanto no Legislativo, quanto nos ministérios existem limites a uma agenda ambiental profunda.
Apesar dos interesses conflitantes nas arenas políticas do presidencialismo de coalizão, a agenda ambiental não ficou bloqueada. Sob o governo Bolsonaro o Legislativo aperfeiçoou a Política Nacional de Segurança de Barragens (nº 12.334/2010) através da lei nº 14.066/2020, refletindo o impacto da tragédia de Brumadinho no estado de Minas Gerais, e aprovou a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (nº 14.119/2021).
O PL 4129/2021, proposto pela deputada Tábata Amaral – PSB/SP e outros parlamentares de esquerda, estabeleceu diretrizes para a elaboração de Planos de Adaptação à Mudança do Clima e foi transformado na lei nº 14.904/2024, complementando a Política Nacional de Mudança do Clima, aprovada em 2009. A lei determina que os entes federativos criem Planos alinhados com a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil e objetiva promover a adaptação e a mitigação de emissões de gases de efeito estufa, via fomento à agricultura de baixo carbono, à segurança alimentar, hídrica e energética.
Diante da inevitabilidade da ação política necessária à gravidade do problema, vale atentar para as características da regulação que determinam resistências ou cooperação no Parlamento. Políticas de mitigação e adaptação envolvem incentivos financeiros do governo que agradam aos setores econômicos, criando benefícios que podem ser apropriados privadamente.
O ambientalismo destaca que o modelo de produção e consumo da sociedade moderna determina as ações sociais que destroem a natureza e deterioram as condições ambientais de sobrevivência de todas as espécies. Essa centralidade posiciona as atividades produtivas em constante tensão com as restrições da regulação ambiental, colocando a defesa de benefícios específicos em confronto com a defesa de difusos benefícios ambientais. Mas, os riscos ambientais se tornaram palpáveis e agora são abordados sinteticamente como aquecimento global. Parlamentares que se empenham em enfraquecer o marco regulatório ambiental, também exigem medidas urgentes do governo quando ocorre uma tragédia.
Diante das dificuldades em sustentar políticas ambientais rigorosas talvez nos reste a administração da crise com políticas de mitigação. Nesse cenário, soa ilusório um Pacto Pela Transformação Ecológica entre os três poderes, pois incentivos à mecanismos de modernização ecológica não promovem justiça climática nem interrompem os efeitos das mudanças climáticas.