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Religiosos e militares na política: o cenário nas eleições municipais de 2024

Marta Mendes da Rocha

Gustavo Fernandes Paravizo Mira

Nas últimas décadas, as eleições brasileiras têm se caracterizado pelo aumento do número de candidatos provenientes das forças repressivas do Estado, como militares, policiais e bombeiros, bem como de líderes religiosos, especialmente vinculados às igrejas evangélicas. Neste artigo discutimos algumas tendências relacionadas à participação desses segmentos nas eleições municipais e suas implicações para as políticas públicas, a democracia e o princípio do Estado laico.

O crescimento das candidaturas religiosas no país

Um levantamento recente feito pelo Instituto de Pesquisa em Reputação e Imagem (IPRI) mostrou que as candidaturas religiosas aumentaram 225% de 2020 a 2024. A pesquisa feita no portal do Superior Tribunal Eleitoral considerou apenas os candidatos ao cargo de vereador, prefeito e vice-prefeito que utilizaram explicitamente uma identidade religiosa em seu nome de urna. O ano de 2020 representou o pico com 9.196 candidatos religiosos. Em 2024, acompanhando a redução observada nas eleições como um todo, o número de candidatos religiosos caiu para 7.206 (-21,6%). A grande maioria deles (91%) são evangélicos que se autodenominam pastor, pastora, irmão, irmã e missionária. Eles concorrem, principalmente, por partidos de direita como PL e Republicanos, e centro-direita. Apesar de expressivo, esse número – que ainda pode sofrer alterações pelo TSE – corresponde a apenas 1,6% do total de candidatos registrados. O quantitativo também pode variar a depender dos critérios utilizados na busca – profissão declarada e/ou nome de urna – e das identidades religiosas consideradas.

O aumento do número de candidaturas em 2020 foi interpretado como resultado do momento político do país, caracterizado pela presidência de Jair Bolsonaro e pelo crescimento da bancada evangélica na Câmara e no Senado. Ao longo de seu mandato, Bolsonaro se aproximou de lideranças do mundo evangélico e adotou uma forte retórica cristã, cuja maior expressão era seu slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Embalados neste discurso, em 2020, muitos candidatos a vereador(a) e prefeito(a) apostaram na identidade religiosa como uma chave para um bom desempenho eleitoral.

Apesar do crescimento contínuo das candidaturas religiosas, o número de vereadores religiosos eleitos registrou ligeira queda passando de 527 em 2016, para 469 em 2020. Já o número de prefeitos eleitos aumentou de 14 para 16. Entre os exemplos mais notáveis está o do bispo da Igreja Universal, Marcelo Crivella, eleito para a prefeitura do Rio de Janeiro, em 2016, pelo Republicanos. 

O caso de Crivella mostra que nem todos os políticos que se valem de sua identidade religiosa como capital ou para sinalizar para os eleitores seu alinhamento com crenças e valores, fazem uso explícito dessa identidade em seu nome de urna. Em Belo Horizonte, o ex-vereador e agora deputado, Nikolas Ferreira (PL), mobiliza sua identidade cristã-evangélica em seus discursos e várias de suas proposições de lei se alinham a ela. Em Jaboatão dos Guararapes, segunda maior cidade de Pernambuco, a eleição para a prefeitura em 2024 ocorre entre dois candidatos fortemente associados às igrejas evangélicas, o atual prefeito Mano Medeiros (PL) e Clarissa Tércio (PP), ambos ligados à Assembleia de Deus. 

Igrejas e grupos religiosos organizados sempre buscaram difundir seus valores e pautas junto aos representantes políticos mobilizando seus recursos e redes de influência para apoiar direta ou indiretamente candidatos comprometidos com suas causas e interesses. O que mudou nas últimas décadas foi o aperfeiçoamento de suas formas organizativas, o aumento da participação direta no processo eleitoral, o estreitamento de suas relações com partidos políticos e o uso massivo da mídia e das redes sociais para se comunicar com fiéis e eleitores. Com a crescente polarização na política brasileira e o acirramento das disputas ideológicas, questões morais e valores religiosos tornaram-se centrais no debate político brasileiro. Neste contexto, igrejas e líderes religiosos emergiram como atores chave na defesa de pautas conservadoras, como a oposição ao casamento igualitário, ao aborto e às políticas de gênero.

No conjunto dos candidatos religiosos, os evangélicos destacam-se em todas as eleições. Eles são apontados como uma das principais bases sociais do bolsonarismo no país, devido às afinidades entre o discurso e as pautas conservadoras da ultradireita e a moralidade tradicional defendida pelo segmento. As pesquisas de intenção de voto corroboram essa  impressão: em 2018, eles deram 11,5 milhões de votos a mais para Bolsonaro, segundo pesquisa do Datafolha. Em 2022, a diferença aumentou 19,5%, totalizando 14,3 milhões de votos para Bolsonaro entre os evangélicos.

Apesar disso, alguns questionam se é possível falar em um voto evangélico no Brasil considerando a heterogeneidade do grupo e seu caráter mutável, além da presença de grupos progressistas em seu interior. Segundo pesquisa do Datafolha realizada em todo o país, a maior parte das pessoas que se declaram evangélicas são mulheres, negras e ganham até dois salários mínimos, perfil que coincide com os eleitores de Lula na última eleição. Em uma pesquisa realizada em São Paulo, a maioria dos evangélicos afirmou que não votariam em candidatos indicados pelo líder da igreja. A mesma pesquisa mostrou que a maioria das mulheres evangélicas não apoia pautas defendidas pela ultradireita e por Bolsonaro, como o homeschooling e o porte de armas, e são a favor da educação sexual nas escolas. 

Os candidatos da segurança pública e a agenda Lei e Ordem

Assim como ocorre para os candidatos religiosos, a entrada de policiais, bombeiros, militares reformados e integrantes das Forças Armadas na política brasileira também se tornou uma realidade nas últimas décadas. O número de candidatos militares que tentaram se eleger nas eleições municipais saltou de 5.585, em 2004, para 6.649 em 2024, um aumento de 20%, segundo dados do TSE. 

O ingresso massivo de membros do aparato repressivo na política e sua crescente politização foram impulsionados pelo processo de impeachment de Dilma Rousseff, em 2016 e, sobretudo, pela vitória de Jair Bolsonaro, em 2018. Conforme análise do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o cenário de crise política, os avanços nas investigações da Operação Lava-Jato e aumento da importância da segurança pública no debate público nacional nos últimos anos foram algumas das condições necessárias para o aumento de candidaturas provenientes das forças repressivas. Estes fatos, associados à reversão de expectativas no ambiente econômico pavimentaram o caminho para que pautas atreladas ao conservadorismo moral, com alinhamento ideológico à direita, avançassem no campo da segurança pública brasileira dentro da chamada agenda Lei e Ordem. 

É o caso das campanhas pelo fim da progressão de pena e das saídas temporárias para a reintegração de pessoas encarceradas, da redução da maioridade penal, pela tipificação de terrorismo para ocupações de terra urbanas e rurais, em defesa das escolas cívico-militares, da flexibilização do porte de armas e do excludente de ilicitudes nas ações policiais. Estas e outras discussões se fortaleceram no Legislativo Federal e transbordaram para outros níveis. No nível local, a implementação de Guardas Civis Municipais (GCMs) em 1.467 municípios, incluindo 22 das 26 capitais, algumas delas com armamento pesado, reflete a clara preocupação das administrações locais com a segurança no cotidiano das cidades.

O crescimento desse segmento na política responde a uma percepção pública de insegurança. Dados de 2023 mostram que 23 milhões de pessoas convivem diariamente com a presença de milícias no país e 79% da população acredita que a violência aumentou. Porém, os indicadores objetivos de violência e criminalidade não são capazes de, por si só, mobilizar os eleitores. É necessário que os partidos e lideranças políticas invistam seu tempo e energia para promover essa agenda. Bolsonaro, ao pautar a questão da segurança durante a campanha e o governo, ocupou explorou a convergência ideológica entre o conservadorismo moral e o caráter repressivo das forças militares, responsáveis por coibir a criminalidade. 

No entanto, assim como ocorre com os candidatos religiosos, o grande número de candidatos do aparato repressivo não se traduz de forma correspondente no número de eleitos. Tomando por base 2016, ano de melhor resultado para o grupo, foram eleitos 660 vereadores e 33 prefeitos em todo país. Em 2020 foram eleitos 587 vereadores e 36 prefeitos, uma diminuição de 12,5% entre os primeiros e alta de 9% entre os segundos. Nas eleições municipais de 2024, o volume de concorrentes neste segmento sofreu redução de 23%, redução maior do que a observada no total de candidaturas, que foi de 18%. Em levantamento do Poder 360 com dados do TSE, que considera apenas nomes de urna ligados a cargos ou patentes militares, também observou-se queda significativa de candidatos que vinculam suas candidaturas às corporações em relação a 2020. Entre os candidatos a prefeito, a redução foi de 61,6%, passando de 198 para 76 em 2024. Também houve diminuição de 56,3% entre vice-prefeitos e 26,2% entre vereadores. Assim como acontece com os candidatos religiosos, os candidatos provenientes do aparato repressivo do estado são mais frequentes nos partidos mais à direita e menos presentes nas siglas de esquerda.

Vale notar que alguns nomes conhecidos pela associação com as corporações, e que ascenderam durante o governo Bolsonaro, estão na disputa em 2024. Em Fortaleza, Capitão Wagner (União Brasil), que nasceu politicamente após liderar a greve militar de 2011 e encabeçou a paralisação das atividades da força em 2019, afastou-se do bolsonarismo e é o candidato mais competitivo nas capitais. No Rio de Janeiro, o delegado e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Alexandre Ramagem (PL), aparece em segundo lugar. Mesmo tendo poucas chances e estando bem atrás do primeiro colocado, Ramagem pode se valer do pleito como prévia para uma possível candidatura ao Senado em 2026. Em Manaus, o capitão e deputado federal, Alberto Neto, concorre à prefeitura e busca atrair votos se associando ao bolsonarismo, mas deseja evitar o rótulo de radical. Também chama a atenção o caso de Juiz de Fora que em 2020 teve duas delegadas Sheila (PSL) e Ione Barbosa (Republicanos) concorrendo à prefeitura. Em 2024, apenas Ione, agora no Avante, se reapresentou e ocupa o segundo lugar nas sondagens de intenções de voto. 

Religiosos e militares na produção de políticas públicas municipais

Mesmo que se considere que os evangélicos não são um grupo coeso que obedece cegamente às lideranças religiosas em matéria de política, isso não significa que eles sejam indiferentes à religião e aos valores professados pelos candidatos. E é aí que candidatos(as) religiosos(as) buscam se promover, apresentando-se como porta-vozes das crenças e visões da comunidade evangélica, ou de parte dela, e defensores de pautas religiosas e morais. Ainda que muitas das questões que hoje mobilizam as disputas ideológicas e de costumes no Brasil não sejam da alçada dos municípios, as câmaras municipais e prefeituras Brasil afora se tornaram palco de intensas disputas legislativas que incidem no campo dos costumes. Prefeitos(as) e vereadores(as) religiosos(as) podem promover suas crenças em temas como educação, defendendo o ensino de valores cristãos e se opondo ao ensino de temas e teorias contrários à sua fé religiosa. Na saúde, a disputa envolve os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, políticas para minorias sexuais e o acesso ao aborto legal. Além disso, há conflitos em relação à produção e à circulação de bens culturais e às políticas de memória.

Este raciocínio também parece valer para políticos eleitos com capital vinculado às forças repressivas. A percepção de aumento da violência e a sensação de impunidade levou o tema da segurança ao centro das eleições municipais brasileiras. Em termos de políticas substantivas, as prefeituras podem contribuir para aumentar a segurança de bairros e ruas por meio da iluminação pública e de iniciativas que incentivem a ocupação do espaço público. Porém, a implantação das Guardas Civis Municipais tem se destacado como o principal tema na agenda das forças de segurança. Hoje, 26,3% das cidades brasileiras já contam com GCMs e em 19 capitais elas utilizam armas de fogo. Além disso, as GCMs vêm ampliando bastante seu escopo de atuação. Para além da segurança patrimonial, em algumas cidades elas atuam na investigação de crimes, policiamento ostensivo e combate ao tráfico de drogas.

Entre a cruz e a espada: implicações para a democracia, os direitos humanos e o Estado laico

O crescimento de candidatos religiosos e do aparato repressivo levanta preocupações entre estudiosos e políticos. No caso dos religiosos, teme-se que a erosão das fronteiras entre as esferas religiosa e política resulte em políticas públicas moldadas por doutrinas religiosas específicas, com consequente retrocesso nos direitos de minorias, aumento da intolerância e a exclusão dos que não compartilham das mesmas crenças. Políticos e governos influenciados por agendas religiosas podem promover a censura de manifestações culturais, artísticas e de mídia que considerem ofensivas ou contrárias aos valores religiosos, restringindo a liberdade de expressão. Por outro lado, especialistas argumentam que a existência de atores políticos motivados pela religião não implica, necessariamente, em absorção religiosa do estado. 
No que se refere aos candidatos e eleitos ligados às forças policiais, há preocupação de que haja escalada da violência policial legitimada pelo estado na tentativa de suprir as demandas de segurança. O aumento do policiamento ostensivo, do aprisionamento em massa e da letalidade não são as melhores soluções para a questão, ao contrário, elas têm contribuído para fortalecer as estruturas do crime organizado. Além disso, evidências mostram que a política conduzida por vereadores law-and-order no nível local  tem efeitos devastadores quando estes atores incentivam políticas repressivas e desviam recursos de bairros pobres, onde provavelmente não encontram apoio político, para localidades onde se concentram seus votos. Isso demonstra que ações repressivas de corte conservador podem aumentar a distância de um projeto de sociedade mais equânime e justo na medida em que se dirigem a populações com claro corte de renda e cor da pele nas periferias e nos presídios.

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Marta Mendes da Rocha
é cientista política, pesquisadora do CNPq e professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora e fundadora e coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Política Local (NEPOL/PPGCSO/UFJF).
Gustavo Fernandes Paravizo Mira
é jornalista, mestre em comunicação, doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Política Local (NEPOL/PPGCSO/UFJF).