SPECIAL REPORTS

Candidaturas LGBTI+ nas eleições municipais de 2024

Daniela Rezende

O Tribunal Superior Eleitoral divulgou dados das candidaturas às eleições municipais brasileiras de 2024, com a inclusão de informações sobre a orientação sexual e identidade de gênero de candidatos/as/es, demanda de movimentos sociais que permitiria avançar no entendimento do perfil das candidaturas aos pleitos municipais, mas também dimensionar a desigualdade e os desafios no acesso à política institucional por esses grupos populacionais. 

Os dados oficiais disponíveis apontam para a baixa taxa de resposta no que se refere a essa informação, apenas 31,61% de respostas, o que pode ter sido causado pela não – obrigatoriedade da mesma quando do registro das candidaturas. Considerando o estado de subnotificação, os dados disponíveis apontam para a presença majoritária de candidaturas de pessoas declaradas heterossexuais (143.030 ou 98,27%), seguidas das candidaturas de pessoas gays (1057 ou 0,73%), lésbicas (656 ou 0,45%), bissexuais (453 ou 0,31%), assexuais (191 ou 0,13%), pansexuais (73 ou 0,05%). Com relação à identidade de gênero, 80% de candidatos/as/es se identificaram como cisgênero, 20% preferiram não informar e o percentual de candidaturas de pessoas transgênero consta no site oficial como 0%. 

Antes da coleta e divulgação dos dados oficiais pelo TSE, levantamentos vinham sendo realizados por organizações como VoteLGBT e pela Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra). Para o pleito de 2024, essas informações foram publicadas no site da associação Gênero e Número e mostram um quantitativo inferior àquele presente nos dados oficiais: foram identificadas 552 candidaturas de pessoas LGBTI+, o que representa 22,71% do total registrado no TSE. Essas candidaturas se concentram na região Sudeste, sendo o estado de São Paulo aquele com o maior volume, com 132 candidaturas registradas. Essa diferença pode ser explicada pela forma como a identidade de gênero e orientação sexual são mobilizadas nas campanhas: no caso dos dados do TSE, a informação não implica em que necessariamente seja mobilizada na campanha, enquanto os levantamentos organizados pela sociedade civil se ancoram na divulgação explícita delas por candidatos/as/es. 

Essa escolha, relativa à divulgação da identidade de gênero e orientação sexual, deve ser analisada considerando o contexto de violência dirigida à população LGBTI+. Dossiê produzido pelo Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+ aponta que uma pessoa LGBTI+ foi assassinada no Brasil a cada 38 horas em 2023: “O Brasil permanece com alto índice de violência, constando na lista de países mais letais do mundo, segundo Estudo Global sobre Homicídios que a ONU divulgou em dezembro de 2023” (Mortes e violências contra LGBTI+ no Brasil: Dossiê 2023). Esse quadro aponta ainda que a afirmação da identidade de gênero e orientação sexual encontra limites no preconceito e na discriminação, exercidas de forma violenta para limitar direitos da população LGBTI+, incluindo aqui o direito à existência, à vida. A ascensão e fortalecimento da extrema de direita no Brasil pode levar ao recrudescimento desse contexto, na medida em que tensiona frontalmente as demandas e direitos da população LGBTI+. 

Trata-se, portanto, de uma questão material fundamental, ou seja, a inclusão de pessoas LGBTI+ na política se vincula a uma estratégia de sobrevivência desse grupo, extrapolando a dimensão identitária a que suas pautas são relegadas e, assim, escamoteadas como menos importantes no contexto da política institucional. Nesse sentido, mesmo a representação descritiva de pessoas LGBTI+ seria relevante e justificável, seja porque estão sujeitas a situações de injustiça que limitam suas possibilidades de atuação na política institucional (Mansbridge, 1999), seja porque sua presença nesses espaços é em si uma reivindicação: “quando corpos se unem como o fazem para expressar sua indignação e para representar sua existência plural no espaço público, eles também estão fazendo exigências mais abrangentes: estão reivindicando reconhecimento e valorização, estão exercitando o direito de aparecer, de exercitar liberdade, e estão reivindicando uma vida que possa ser vivida” (Butler, 2018, p. 33)

Pesquisas recentes na Ciência Política brasileira têm se dedicado a investigar os diversos obstáculos encontrados pela população LGBTI+ na política. Destaco aqui duas teses defendidas em programas de pós-graduação de excelência, desenvolvidas por Clayton Feitosa (PPGCP/UnB, 2022) e Pedro Barbabela (PPGCP/UFMG, 2024). 

A pesquisa de Feitosa (2022) analisou o processo de institucionalização de valores, objetivos e interesses do movimento LGBTI+ nos partidos políticos brasileiros. Essa questão é fundamental porque partidos políticos detém o monopólio da representação no Brasil, atuando como filtros para as potenciais candidaturas, além de concentrarem recursos de campanha, financeiros e midiáticos. A entrada desses grupos nos partidos e a institucionalização de suas agendas podem, como aponta o autor, “favorecer a inclusão e a participação política de grupos marginalizados pela via da representação política no parlamento e da elaboração de leis inclusivas ou por meio da ocupação de cargos públicos que sejam definidores de políticas públicas afirmativas” (2022, p. 22). 

O autor realizou ampla pesquisa documental e entrevistas com atores partidários de três organizações nacionais, PT, PSOL e PSDB, e verificou que os planos de governos relativos às eleições de 2007, 2011, 2015 e 2019 continham propostas e reconheciam que era necessário desenvolver políticas públicas para a população LGBTI+. Entretanto, a análise documental indicou que as estratégias de inclusão partidária do segmento são do tipo ação afirmativa, ou seja, “os partidos consideram a temática, desenvolvem iniciativas importantes, mas possuem limites no estabelecimento de ações mais enérgicas de inclusão de atores e prioridade da pauta” (Feitosa, 2022, p. 351). Quando se analisa, porém, o controle de recursos partidários por ativistas LGBTI+, o quadro é mais crítico, visto que há grandes limitações no acesso a recursos partidários e à participação em processos de tomada de decisão, como aqueles relativos ao recrutamento eleitoral. Esses elementos constrangem diretamente a capacidade eleitoral desse grupo, já que o sucesso nas eleições está amplamente associado ao financiamento eleitoral e que as decisões sobre as nominatas em geral são restritas às elites partidárias, ainda compostas majoritariamente por homens brancos, cisgênero, heterossexuais. 

Passando mais diretamente à análise da dimensão eleitoral, Barbabela (2024) tem como foco pessoas LGBTI+ que participaram do processo eleitoral nos municípios brasileiros no ano de 2020, com o objetivo de “compreender as carreiras políticas das vereadoras LGBTI+ que participaram do processo eleitoral nos municípios brasileiros no ano de 2020” (Barbabela, 2024, p. 10). O autor argumenta que a eleição de Bolsonaro e a ascensão da extrema direita no Brasil estimulou uma reação desse grupo no sentido de tratar a representação política como uma reação e uma resposta a esse cenário. 

O autor fez um importante levantamento das pessoas LGBTI+ eleitas para o legislativo municipal entre 1992 e 2020, o que o permitiu observar que o sucesso dessas candidaturas se dá majoritariamente em cidades de pequeno e médio porte, o que contraria, por exemplo, achados de pesquisas voltadas a analisar a representação feminina (Araújo e Borges, 2007). Nesses casos, Barbabela (2024, p. 202) verificou que a orientação sexual não é um tema de destaque nas candidaturas, com exceção das pessoas trans, em que a identidade de gênero “impacta diretamente as suas experiências no processo eleitoral”, convergindo com o que Butler (2018) aponta como “ação corpórea”. Outro padrão identificado foi que essas candidaturas usualmente se vinculam a partidos de direita e centro-direita, o que pode estar relacionado menos com a dimensão ideológica e mais com o tamanho do partido (e, consequentemente, com o volume de recursos eleitorais disponível) e a estrutura disponível para as candidaturas.

A partir de pesquisa documental, acompanhamento das redes sociais de candidatos/as/es e entrevistas com 13 pessoas eleitas em 2020, Barbabela (2024) identificou uma inflexão nesse aspecto, verificando que nas eleições de 2020 a maioria de vereadores/as LGBTI+ se elegeu por partidos de esquerda e centro-esquerda, destacando-se o PT como partido que mais elegeu candidatos/as/es desse segmento. Isso ocorreria, segundo o autor, devido ao grau de institucionalização de partidos como PT o que garantiria mais chances de participação nas instâncias intrapartidárias e acesso a recursos, apesar da informação recorrente nas entrevistas de que os recursos partidários distribuídos foram insuficientes e que “as relações com as lideranças partidárias foram fatores que dificultaram os andamentos de suas campanhas” (Barbabela, 2024, p. 203). 

Outro elemento destacado pelo autor, que dialoga diretamente com os dados apresentados no início do texto, é que a mobilização da identidade e orientação sexual nas campanhas não é uma questão dada ou definida, havendo um cálculo que considera os ganhos e perdas associados a essa dimensão. Entretanto, como destaca Barbabela (2024, p. 204), essa estratégia não está disponível para pessoas trans, já que “suas identidades e corpos são postos no centro de todos os debates e são foco principal nos casos de violência política” identificados na pesquisa. 

As pesquisas apresentadas apontam para um cenário de grandes obstáculos institucionais à presença de pessoas LGBTI+ na política institucional, o que aponta para os limites da democracia brasileira se se considera a promessa de igualdade que esse regime carrega, ainda que se trate de igualdade formal. O que se observa nos pleitos eleitorais e carreiras analisados, nas dinâmicas intrapartidárias investigadas e nos dados disponibilizados pelo TSE é que a presença de pessoas LGBTI+ nesses espaços tensiona padrões e estereótipos naturalizados na política de forma tão incisiva que a resposta usual a essa presença tem sido a violência, o que termina por reforçar o quadro de sub-representação desse segmento e, consequentemente, constranger a garantia de direitos e o desenvolvimento de políticas públicas que atendam de forma adequada e continuada suas demandas. 

Nesse cenário, as iniciativas adotadas pelo TSE são importantes, mas não suficientes, uma vez que é preciso enfrentar firmemente a violência LGBTI+fóbica, garantir que partidos políticos cumpram seu papel como instrumentos da democracia e assegurar a presença da população LGBTI+ nos espaços de tomada de decisão, o que contribui para a realização da promessa associada à sua presença, de aprofundar a democracia brasileira e promover justiça e inclusão.  

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Daniela Rezende
é doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais e professora associada no Departamento de Gestão Pública da Universidade Federal de Ouro Preto.