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A disputa em torno das comissões mistas das Medidas Provisórias no Congresso brasileiro

Eliene Silva
Bruno de Castro Rubiatti

 

As mudanças no rito de tramitação implementadas pelo Congresso Nacional em decorrência da Pandemia de Covid-19 alteraram a dinâmica de votação das matérias legislativas e, por sua vez, a relação entre os poderes Executivo e Legislativo. O Sistema de Deliberação Remota (SDR) instituído de maneira excepcional pela Câmara dos Deputados no dia 17 de março de 2020, viabilizou o funcionamento da Casa durante a crise sanitária e econômica do País. Em si, as medidas adotadas pelas Câmaras não modificaram os Regimentos Internos no que se relaciona à tramitação das matérias legislativas, houve apenas uma adaptação do processo legislativo à emergência pública. Contudo, esse formato afetou fortemente a atividade legislativa das Casas, especialmente, o funcionamento de instâncias decisórias importantes como as comissões permanentes, as quais foram totalmente esvaziadas durante o período remoto devido a centralização de discussão das matérias no plenário.

Outro aspecto dessa mudança, ocorreu de maneira muito específica e significativa em relação à tramitação das Medidas Provisórias (MPs). A norma legislativa é editada com força de lei pelo Presidente da República para análise pelo Congresso Nacional. Por regra, as MPs são emitidas em situações de urgências e devem ser apreciadas por uma comissão mista constituída por 12 deputados e 12 senadores, sendo acrescido de mais uma vaga a cada uma das Casas designados pelo presidente do Congresso Nacional obedecendo a distribuição partidária nos plenários das casas. Porém, com o processo de deliberação remota, a mesa aprovou em reunião conjunta o Ato nº 1/20 no dia 31 de março de 2020 para modificar o rito de tramitação das MPs de forma excepcional até a retomada dos trabalhos presenciais. Com isso as medidas passaram a ser apreciadas pelo plenário das Casas sendo dispensada a formação de uma comissão mista. O novo formato aumentou o poder discricionário dos presidentes das mesas, os quais constituíram-se em atores centrais durante o processo legislativo dessas matérias. Além disso, essa alteração acabou privilegiando a Câmara do Deputados em detrimento do Senado, uma vez que os projetos de iniciativa do Executivo iniciam seu trâmite pela câmara baixa e, durante a vigência do Congresso Remoto, essa prerrogativa se estendeu para as Medidas Provisórias também.

 

Congresso Remoto e as Comissões Mistas das MPs

Cabe notar que desde 2002 a passagem das MPs pelas comissões mistas é obrigatória e a indicação dos presidentes e relatores se dava de forma a garantir um rodízio entre os partidos. Isso dava ao Executivo a possibilidade de usar estrategicamente o envio das MPs, deixando as medidas mais importantes para momentos oportunos: quando fosse a vez dos partidos mais próximos ao governo indicar os relatores. Porém, com a suspensão das comissões mistas, a indicação dos relatores se dá diretamente no plenário das casas. Essa forma de indicação dos relatores reforça os poderes do presidente da casa uma vez que é sua função essa indicação de relatores do plenário. Dessa maneira, além de definir o momento de votação no plenário, o presidente da casa também define quem será o parlamentar que ocupará um posto central para a discussão e deliberação da matéria: o relator.

Como as Medidas Provisórias são iniciativas do Executivo, sua tramitação passa primeiro pela Câmara dos Deputados – no rito normal, após tramitar pela comissão mista, a MP passaria primeiro pelo plenário da Câmara dos Deputados e, posteriormente, pelo Senado; sem a comissão mista, o primeiro a analisar a medida é o plenário da Câmara. Isso, de certo modo, garantiu maior privilégio à Câmara e menor margem de ação para o Senado Federal: a depender do trâmite na Câmara dos Deputados, o Senado receberá a iniciativa com escasso tempo para a sua discussão.

Cabe notar que mesmo na tramitação normal das MPs, o Senado poderia ficar com pouco tempo para discutir e votar a matéria – situação que já gerava atrito entre as casas, o que levou a tentativas de formulação de propostas para impor limites de tempo de tramitação em cada uma das câmaras, garantindo à câmara alta tempo hábil para discutir as MPs. Todavia, mesmo que o tempo de tramitação no Senado fosse escasso, a tramitação iniciada na comissão mista garantia a participação dos senadores, o que lhes dava capacidade de influenciar a decisão e propor mudanças nos textos das medidas na primeira etapa da discussão – no interior da comissão mista –, além de poderem ocupar a presidência ou relatoria da comissão, espaço que garantia uma atuação mais forte na tramitação dessas medidas do Executivo. Com a interrupção das comissões mistas esse poder foi sensivelmente diminuído, deixando o Senado apenas com um papel de revisor da discussão feita na Câmara dos Deputados e, frequentemente, com pouco tempo para fazer sua discussão e votação das medidas.

Dessa forma, essa dinâmica do Congresso Remoto centralizou o poder de agenda no presidente da Câmara, que a despeito das regras passou a designar relatores para emitir parecer da matéria garantindo mais tempo de discussão antes de passar para o Senado.

Ademais, esse arranjo imprimiu uma realidade nada trivial para o jogo decisório, e principalmente, para o avanço da agenda do novo governo eleito. Com o retorno das atividades legislativas presenciais, o embate político entre Arthur Lira (PP), presidente da Câmara dos Deputados, e Rodrigo Pacheco (PSD), presidente do Senado Federal, tornou-se um problema institucional que precisa ser enfrentado. Por um lado, o Senado defendia o retorno ao modelo previsto pela Constituição, enquanto a Câmara na figura de Lira não concordava com a retomada das reuniões em comissão mista alegando ausência do princípio da proporcionalidade. Esse conflito entre os presidentes das casas se manteve até o início do mês de abril, quando as comissões mistas voltaram a ser instaladas.

 

O retorno das comissões mistas

Finalizado o período de restrições por causa da pandemia, o Congresso Nacional voltou ao seu rito normal de trabalho, porém, o retorno das comissões mistas foi atrasado devido aos conflitos de interesses dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. Em fevereiro de 2023 a mesa do Senado decidiu pela volta do rito normal da tramitação das MPs – com instalação das comissões mistas –, porém, por ter sido um ato conjunto das mesas das duas casas, o presidente do Senado e – consequentemente presidente do Congresso Nacional – decidiu aguardar a decisão da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados para que tomasse posição em relação a revogação do ato conjunto que instituiu esse trâmite.

Nesse sentido, criou-se um conflito entre as duas casas em torno do retorno à instalação das comissões mistas. De um lado, o presidente da Câmara dos Deputados apontava que a forma como estava definida a composição dessas comissões gerava uma “desproporcionalidade”, uma vez que ambas as casas tinham o mesmo número de vagas na comissão mista e a Câmara dos Deputados apresenta um tamanho seis vezes maior que o Senado. Por outro lado, o Senado apontava que o rito instituído no período do Congresso remoto limitava o papel da casa na tramitação dessas matérias.

Sobre o ponto da “desproporcionalidade” nas comissões mistas cabe notar que a adoção das comissões do Congresso Nacional da forma como está definida constitucionalmente tende a reforçar a simetria entre as casas Legislativas, permitindo que deputados e senadores tenham o mesmo peso em seu interior. Ao se adotar uma forma de composição que dê pesos desiguais para cada casa de acordo com o tamanho de seu plenário, acabaria gerando uma distorção favorável a maior câmara (no caso a Câmara dos Deputados), de forma que a possibilidade de intervenção e atuação dos Senadores nessas comissões ficaria limitada a uma minoria no interior das comissões mistas. Soma-se a isso ao fato que, após a etapa da comissão mista, a MP (ou Projeto de lei de Conversão dela derivado) passa para o plenário da Câmara dos Deputados e só posteriormente para o Senado – em geral com pouco tempo para discutir a matéria devido à prazos constitucionais. Assim, para os Senadores, o momento da comissão mista passa a ser central em sua atuação sobre as MPs, alterar esse papel diminuiria a simetria entre as casas, gerando maiores privilégios para a Câmara dos Deputados no que tange essas medidas centrais para a agenda do Executivo.

Algumas iniciativas foram tentadas para contornar esse impasse entre as casas como, por exemplo, a formulação de uma proposta de Emenda Constitucional alterando a forma de composição e tramitação das MPs. Porém, essas medidas não lograram sucesso e a falta de acordo entre os líderes da Câmara e do Senado perdura, inclusive com ameaças de obstrução da instalação das comissões mistas por parte dos deputados.

Todavia, no início de abril, após questão de ordem do Senador Renan Calheiros (MDB-AL), as comissões mistas voltaram a ser instaladas. No momento, três delas já se encontram em funcionamento: as comissões mistas 1) da MP 1154/2023 (reformulação da estrutura do Governo Federal), 2) da MP 1162/2023 (que reinstitui o programa Minha Casa, Minha Vida) e da MP 1164/2023 (que reconstitui o programa Bolsa Família). Além delas, outras 11 MPs aguardam instalação.

Entre as instaladas até o presente momento é interessante notar a ocupação de dois postos chave: presidência da comissão e relatoria. A comissão mista da MP 1154/2023 tem como presidente o Senador Davi Alcolumbre (União-AP) e relator o Deputado Isnaldo Bulhões Filho (MDB-AL); a da MP 1162/2023 tem como presidente o Senador Eduardo Braga (MDB-AM) aguardando a escolha do relator pelo colegiado – sendo cotado para o cargo o Deputado Guilherme Boulos (PSOL-SP) –; já a da MP 164/2023, o presidente é o Senador Fabiano Contarato (PT-ES) – líder do partido no Senado – e o relator ainda será escolhido pela comissão. Mesmo que o número de comissões mistas instaladas seja baixo, pode-se notar que o seu retorno aumenta a capacidade da própria base governista em ocupar os postos centrais dentro do trâmite legislativo, diminuindo o poder exercido pelas presidências das casas, em especial da presidência da Câmara dos Deputados.

 

Considerações finais

Durante o Congresso Remoto, as modificações na tramitação das MPs aumentaram significativamente o poder dos presidentes das casas, com destaque para o presidente da Câmara dos Deputados. Além disso, a tramitação direta no plenário de cada casa também diminuiu sensivelmente as possibilidades de atuação dos Senadores no processo de tomada de decisão sobre as MPs. Após o fim do período de emergência pública e retomada dos trabalhos presenciais nas duas casas, o retorno das comissões mistas seria o esperado, uma vez que o trâmite dessas medidas é definido constitucionalmente. Todavia, esse retorno trouxe à tona um conflito entre as duas casas legislativas.

Apesar da crítica do presidente da Câmara dos Deputados sobre a “desproporcionalidade” das comissões mistas, é importante frisar que esse é o principal espaço para os Senadores atuarem na tramitação das MPs, uma vez que essas matérias chegam com pouco tempo para discussão e tomada de decisão na câmara alta, e a igualdade no número de membros das duas casas reforça o caráter simétrico do sistema bicameral. De fato, o que se observa é que o retorno das comissões mistas enfraquece o poder das presidências das casas e, de forma muito intensa, diminui o controle da mesa diretora da Câmara dos Deputados sobre a tramitação dessas matérias. Por esse motivo, Arthur Lira (PP) se opôs ao retorno do trâmite constitucional das MPVs. Ao mesmo tempo, as lideranças do Senado se mostravam fortemente favoráveis ao retorno das comissões mistas. Com o impasse, nenhuma saída de conciliação foi de fato firmada e, no final, a partir de uma questão de ordem do líder da maioria no Senado, o presidente desta casa – que é também o presidente do Congresso – declara a prejudicialidade do ato conjunto que instituía o rito das MPs durante a pandemia. Com isso, as Medidas Provisórias do governo Lula (PT) passam a tramitar de acordo com o rito definido pela Constituição.

Apesar dessa situação permitir ao governo uma utilização estratégica das MPs, controlando seu fluxo de apresentação, cabe notar que a decisão de retorno das comissões mistas desagradou lideranças da Câmara dos Deputados, que podem mobilizar seus recursos regimentais para atrasar, ou mesmo obstruir, a instalação dessas comissões. Em suma, apesar desse arranjo ser favorável ao governo, há uma questão ainda pendente: como as lideranças partidárias da Câmara dos Deputados, e seu presidente, irão agir depois desse revés em seu controle sobre a tramitação das MPs? Agora caberá às lideranças da base de apoio do governo a coordenação da ação dentro da câmara baixa para impedir maiores obstáculos para a aprovação das MPs.

 

 

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Eliene Sousa Silva
Doutoranda em Ciência Política no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG. Pesquisadora do PEX-Network - Executives, Presidents and Cabinet Politics (UFMG).<br />
Bruno Rubiatti
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCP) e da Faculdade de Ciências Sociais (FACS) da UFPA. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Instituições Políticas: processo Legislativo e Controle”.<br />