SPECIAL REPORTS

Eleições de 2022: impacto das mudanças institucionais

Maria do Socorro Sousa Braga e Jefferson Ferreira do Nascimento

 

Qual é o formato e o perfil do sistema partidário que sai das eleições de 2022? Para responder essa pergunta direcionamos essa análise para verificar o impacto das mudanças implementadas pelas últimas reformas eleitorais (Lei 13.165/2015, a Emenda Constitucional 97/17, a Emenda Constitucional 111/21, a lei 13.877/2019 e as leis 14.208/21 e lei 14.211/21) no formato do sistema de partidos, e das cotas para mulheres e negros no perfil sociodemográfico do sistema de representação política brasileiro.

 

A primeira, que já vigorou nas eleições de 2016 e 2018, é a cláusula de desempenho dos candidatos e partidos. No que se refere às exigências para o candidato, pela nova regra ele precisa obter um número de votos igual ou maior que 10% do quociente eleitoral (que é a quantidade de votos válidos dividida pelo número de cadeiras em disputa em cada estado) para ser considerado eleito para o Legislativo nas três esferas de poder. Ao vetar que os candidatos com poucos votos sejam eleitos com a ajuda dos chamados “puxadores de votos” das legendas e, até então, da coligação, a expectativa é a de que essa medida deve ter reduzido a bancada partidária, ou até mesmo impedido que partidos consigam representação parlamentar. Já no que diz respeito aos partidos, a Emenda Constitucional 97/17 estipulou cláusula de desempenho progressiva até 2030 para que eles tenham acesso aos recursos do fundo partidário e ao tempo gratuito para a propaganda no rádio e na TV. Esses recursos são fundamentais para a sobrevivência dos partidos, pois o fundo partidário viabiliza a manutenção das atividades partidárias e o tempo de propaganda garante um mínimo de visibilidade pública. Nesse caso, a tendência será de redução paulatina do número de partidos pequenos com acesso a esses incentivos. Isso porque, já nas eleições de 2018 para a Câmara dos Deputados, os partidos tiveram que alcançar 1,5% dos votos válidos distribuídos em pelo menos um terço das unidades da federação, com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada uma delas; ou elegido pelo menos nove deputados federais distribuídos em um terço das unidades da federação. Nessas eleições de 2022 tiveram que obter 2% dos votos válidos também distribuídos em pelo menos um terço dos estados, com um mínimo de 1% dos votos válidos em cada um deles; ou terem elegido pelo menos onze deputados federais em um terço das unidades da federação. Por fim, os partidos que sobreviverem até as eleições de 2026 terão esses direitos se lograrem nas eleições um mínimo de 2,5% dos votos válidos distribuídos em um terço dos estados, com um mínimo de 1,5% dos votos válidos em cada um deles ou tiverem elegido 13 deputados distribuídos em pelos menos um terço dos estados.

 

Outra medida crucial que passou a vigorar nas eleições municipais de 2020 é a proibição das coligações eleitorais para disputar cargos legislativos. Mas em termos de eleições para os legislativos estaduais e nacional essa medida foi efetivada somente nestas eleições de 2022, após 36 anos de existência desse mecanismo estratégico para a coordenação política dos dirigentes partidários. Devido à dificuldade dos partidos pequenos de alcançarem o quociente eleitoral, por um lado, e pelas estratégias de coordenação da competição pelos vários cargos eletivos, por outro lado, esse dispositivo acabou favorecendo partidos de todos os tamanhos. Mas sem poder lançar mão desse expediente, os mais prejudicados serão os partidos pequenos e nanicos. Isso porque a maioria desses partidos somente conseguiu representação ao se coligarem entre si ou com partidos maiores, beneficiando-se do resultado coletivo alcançado pela cooperação entre eles, afinal a distribuição das cadeiras no Legislativo era feita levando em conta a votação dada a todos os candidatos e partidos que compunham a coligação. Mas, a partir deste ano, cada agremiação teve de disputar sozinha as cadeiras parlamentares, aumentando a dificuldade de atingir votação suficiente para eleger candidatos.

 

Por fim, ano passado foram aprovadas novas regras eleitorais. Primeira, tivemos a Emenda Constitucional 111/21 incluindo a regra que estipula o peso duplicado de votos para candidaturas femininas e negras. Segunda, tivemos a lei 14.208/21 que instituiu as federações partidárias. Terceira, é a lei 14.211/21 que altera a regra do cálculo das sobras[1]. Entre os objetivos dessa reforma estão: (1) aumentar a participação feminina e negra no Congresso Nacional, diminuindo a sub-representação das mulheres e das pessoas pretas e pardas; e (2) reduzir a fragmentação no Congresso, que pode ser mensurada pelo número de partidos efetivos (índice de Laakso-Taagepera)[2]. Vejamos em termos numéricos os resultados dessas mudanças na tabela 1.

 

Tabela 1: Impacto das novas regras eleitorais nas eleições de 2022

N/A = não se aplica

*Cláusula de Desempenho: 1,5% dos votos válidos e 9 deputados federais;

**Cláusula de Desempenho: 2% dos votos válidos e 11 deputados federais;

*** Foram 100 cadeiras conquistas sem coligações. Apenas o Novo não fez nenhuma coligação em nenhum estado e elegeu 8 deputados federais. Os demais fizeram coligação em algum ou alguns estados. As outras 92 vagas foram conquistadas por partidos em estados que não se coligaram.

Fonte: Elaboração dos autores com base em dados da Câmara dos Deputados (2022a[3]; 2022b[4]; 2022b) e TSE (2018; 2022)[5]

 

A primeira constatação é a de que, como previsto, o número de partidos do sistema partidário reduziu consideravelmente em 2022. Ou seja, paulatinamente observamos a redução da fragmentação partidária na Câmara dos Deputados, evidenciada pelos seguintes números (sempre considerando apenas os resultados eleitorais, sem as movimentações posteriores). O número de partidos representados na Câmara era de 30 em 2018 e 28 em 2014. Em 2018, o Índice Laakso-Taagepera era de 16,46 partidos efetivos, ampliando o número de atores relevantes na negociação Executivo-Legislativo, elevando os custos da governabilidade. Como parâmetro de comparação, em 2014 esse índice era de 13,49.

 

Em 2022, foram eleitos 23 partidos parlamentares. Assim, admitindo a coesão das federações partidárias, o índice de Laakso-Taagepera cai de 16,46 para 9,27 partidos efetivos. Caso o cálculo não considere a coesão das federações e contabilize por desempenho de partido individualmente, esse índice cai de 16,46 para 9,93 partidos efetivos. Portanto, a proibição das coligações, as elevadas exigências para composição de uma federação e a elevação da exigência para a participação no cálculo das sobras contribuíram para a redução na quantidade de partidos efetivos.

 

O outro dado relevante é o efeito da cláusula de desempenho. Em 2018, 14 partidos não atingiram a cláusula de desempenho (Rede, Patriota, PHS, DC, PCdoB, PCB, PCO, PMB, PMN, PPL, PRP, PRTB, PSTU e PTC). Desses 14, nove chegaram à Câmara elegendo juntos 32 deputados (PCdoB, PHS, Patriota, PRP, PMN, PTC, Rede, PPL e DC). O efeito da cláusula já pôde ser verificado pela fusão ou incorporação de cinco desses nove partidos com cadeiras: PHS se juntou ao Podemos (que havia superado a cláusula); o PCdoB incorporou o PPL e Patriota incorporou o PRP – esses quatro não atingiram a cláusula.

 

Neste ano, 15 partidos não conseguiram atingir a cláusula (DC, Novo, Patriota, PCB, PCO, PMB, PMN, PROS, PRTB, PSC, PSTU, PTC/Agir, PTB, Solidariedade e UP). Destes, seis partidos (PSC, Solidariedade, Patriota, PROS, Novo e PTB) conseguiram cadeiras na Câmara elegendo 21 deputados juntos. Esses partidos estarão na Câmara dos Deputados sem direito à liderança e recursos do fundo e os 21 deputados podem migrar para outro partido sem perder o mandato. Além desses, quatro partidos não conseguiram atingir a cláusula se competissem sozinhos, mas obtiveram em função de terem cooperado e formado uma federação: PCdoB, PV, Rede e Cidadania. Ou seja, nenhum dos partidos que ficaram abaixo da cláusula de desempenho em 2018 conseguiram ou conseguiriam reverter os quadros sozinhos (Rede, DC, PCB, PCO, PMB, PMN, PRTB, PSTU, PTC/Agir). Mesmo aqueles que se fundiram ou se uniram com outros partidos abaixo da cláusula não reverteram ou reverteriam o quadro sozinhos (como PCdoB e Patriota). É possível inferir, portanto, que a cláusula de desempenho tem funcionado desde 2018 para a redução do número de partidos efetivos na Câmara.

 

O impacto sobre a redução do número de partidos representados na Câmara dos Deputados pode ser verificado nos gráficos 1 e 2 abaixo.

* A quantidade de partidos representados e o número de partidos efetivos para 2022, para fins deste gráfico, não consideram a coesão das federações.

Fonte: Elaboração dos autores com base nos dados do TSE (2006; 2010; 2014; 2018; 2022)[6]

 

O exame do impacto das prerrogativas que visam a coesão das federações na redução do número de partidos efetivos no gráfico 2 revela que esse efeito é relativamente mais forte. Vejamos o gráfico 2:

Fontes: Elaboração dos autores com base nos dados do TSE (2006; 2010; 2014; 2018; 2022)[7]

      

Pelos gráficos 1 e 2, é possível verificar que, em um hipotético cenário de rompimento de todas as federações, o número de partidos representados se aproximaria ao início da Legislatura 2011-2015 (formada pelas eleições de 2010) com número de partidos efetivos menor, em função do tamanho das maiores bancadas. No cenário oposto em que todas as federações permaneçam, o número de partidos representados e efetivos serão menores que o início da Legislatura 2007-2011 (formada pelas eleições de 2006).

 

Além disso, é possível inferir que a cláusula está contribuindo para favorecer o crescimento das bancadas dos maiores partidos. Por exemplo, as sete maiores bancadas partidárias eleitas em 2022 somam 398 deputados (PL 99, PT 68, União Brasil 59, PP 47, MDB 42, PSD 42 e Republicanos 41), sem considerar federações. Em 2018, as sete maiores somavam 278 deputados (PT 56, PSL 52, PP 37, PSD 34, MDB 34, PR/PL 33 e PSB 32). Não faria sentido retomar os dados de eleições anteriores, pois a cláusula de desempenho passou a ser aplicada a partir dos resultados eleitorais de 2018 e afetou os partidos no ciclo para a eleição de 2022.

 

Sem os estímulos institucionais e financeiros à criação e funcionamento de partidos com nenhuma ou escassa representatividade social, a consequência mais imediata observada é a da redução do número de partidos. Esse processo de enxugamento do sistema partidário, iniciado após os resultados das eleições municipais de 2020, quando muitos partidos pequenos iniciaram negociações para incorporações e fusões, foi expandido com as migrações ocorridas durante o período da janela partidária, e fortalecido nas eleições de 2022. É importante notarmos outra consequência política observada nesse contexto de mudanças institucionais, notadamente o fortalecimento de um campo da direita conservadora comandado pelo atual presidente da república, Jair Bolsonaro. Seu partido em 2018, o PSL, elegeu 52 deputados federais; em 2014, sem Bolsonaro, o partido conquistou apenas 1 cadeira na Câmara. Outro crescimento evidente ocorreu no PL, que elegeu este ano 99 deputados federais com a liderança de Bolsonaro, e quatro anos antes tinha conquistado 33 cadeiras (ainda competindo como PR).

 

No que se refere ao perfil demográfico da Câmara dos Deputados que sai dessas eleições verificamos que houve pouco avanço na situação de sub-representação feminina (15% para 17,7%) e de negros (24% para 26,12%)[8]. Nos dois casos, o aumento da representação entre 2018 e 2022 foi menor que entre 2014 a 2018, a participação feminina aumentou de 10% para 15% e de negros passou de 19,9% para 24%. Esses resultados contrastam com o percentual de candidaturas para a Câmara: foram 3.429 (35%) candidaturas femininas e 4.675 (48%) autodeclarados pretos ou pardos dentre as 9.757 candidaturas aptas[9]. Há, portanto, uma distorção na taxa de sucesso dessas candidaturas se comparadas com as candidaturas masculinas e com candidatos autodeclarados brancos.

 

Diversas razões podem estar relacionadas ao fraco efeito da medida de ação afirmativa que visa mudar essa realidade da política brasileira. Entre as quais destacamos a distribuição desigual dos recursos públicos às campanhas de mulheres e negros pelos dirigentes partidários[10] e o atraso dos repasses, sobretudo, às candidaturas de mulheres negras[11] . Outra ocorrência que merece atenção é a mudança de autodeclaração, 42 deputados que se autodeclaravam brancos passaram a se autodeclarar pardos com a vigência da ação afirmativa, destes 20 foram reeleitos[12]. Desse modo, é relevante uma avaliação mais atenta para identificar se realmente ocorreu algum aumento na participação de pretos e pardos, em que pese o registro do tímido aumento de 123 para 134 eleitos. Por outro lado, a contagem dobrada para fins de distribuição de recursos aos partidos é dos votos recebidos por mulheres, pretos e pardos, sem condicionamento com a conquista da cadeira na Câmara. Portanto, esse objetivo pode ser atingido com o aumento de candidaturas de mulheres (passou de 32% em 2018 para 35% em 2022) e de pretos e pardos (passou de 41,7% para 48%) sem necessariamente que o partido precise turbinar essas candidaturas ao nível dos candidatos mais populares e com maior prestígio dentro da estrutura partidária.

 

À guisa da conclusão, cumpre registrar a efetividade das regras para redução da fragmentação partidária na Câmara dos Deputados já em 2022 e reiterar o baixo crescimento de mulheres, pretos e pardos entre os deputados federais eleitos. Ademais, é importante alertar para o fato de que as ações afirmativas dependem da adesão das lideranças partidárias para a correta distribuição de recursos em tempo hábil para reduzir a distorção na taxa de sucesso das candidaturas femininas e de pretos e pardos.

 

Notas

[1]Até 2018, os partidos que não tivessem atingido o Quociente Eleitoral não participavam da distribuição das sobras. A reforma eleitoral de 2017 autorizou os partidos que não atingiram o quociente eleitoral a participar da distribuição das sobras; porém, em 2021, ficou estabelecido que um partido participa do cálculo das sobras se atingir 80% quociente eleitoral e o candidato obtiver ao 20% do quociente eleitoral.
[2] O índice proposto por Laakso e Taagepera (1979) é calculado pela fórmula 1/(∑pe²). Sendo pe o percentual de cadeiras ocupadas por um partido. Ou seja, um dividido pelo somatório do quadrado das proporções das cadeiras obtidas por cada partido.
[3]Ver sobre eleições de mulheres em <https://www.camara.leg.br/noticias/911406-bancada-feminina-aumenta-18-e-tem-2-representantes-trans/>
[4] Ver sobre a eleição de negros em <https://www.camara.leg.br/noticias/911743-numero-de-deputados-negros-e-pardos-aumenta-894-mas-e-menor-que-o-esperado/>
[5]Ver dados sobre os resultados eleitorais em: <https://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-plebiscitos-e-referendos>
[6] Idem.
[7] Idem.
[8]Ver os números mulheres e pessoas pretas e pardas eleitas nas seguintes matérias: <https://www.camara.leg.br/noticias/911406-bancada-feminina-aumenta-18-e-tem-2-representantes-trans/> e <https://www.camara.leg.br/noticias/911743-numero-de-deputados-negros-e-pardos-aumenta-894-mas-e-menor-que-o-esperado/>
[9]Ver sobre a autodeclaração dos candidatos em <https://www.camara.leg.br/noticias/903111-registro-de-candidaturas-bate-recorde-e-mais-de-10-mil-disputam-vaga-de-deputado-federal/>.
[10] Ver sobre a distribuição de recurso desigual em <https://valor.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/09/17/eleicoes-repasses-a-mulheres-e-negros-estao-abaixo-da-cota-determinada-por-lei.ghtml>.
[11] Ver sobre o atraso de repasses aqui: <https://www.dw.com/pt-br/partidos-atrasam-repasses-a-mulheres-e-preterem-negras/a-63073422>
[12]Sobre mudança de autodeclaração, ver: < https://noticiapreta.com.br/candidatos-pardos-brancos-eleitos/>.

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Maria do Socorro Sousa Braga
É professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos e do Núcleo dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA).<br />
Jefferson Nascimento
É Doutor em Ciência Política, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP) – campus Sertãozinho, membro do Núcleo dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA).