Pedro de Abreu G. dos Santos e Luciana de Oliveira Ramos
Na primeira sessão solene como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 18 de agosto de 2022, o ministro Alexandre de Moraes afirmou que estará atento ao fenômeno das candidaturas laranjas. Na ocasião, ele disse que os partidos que lançarem candidaturas irregulares terão a sua chapa considerada nula, com vistas a alertar as agremiações partidárias e incentivá-las a oferecer o apoio necessário para que as candidaturas tenham reais chances de competição no jogo político-eleitoral. O discurso do ministro Moraes reitera a postura do TSE, que, em 2019, manteve a cassação de seis vereadores de Valença do Piauí (PI) acusados de se beneficiar com candidaturas fictícias em suas listas.
As várias mudanças na lei eleitoral trazem questões importantes sobre como os partidos irão distribuir fundos para candidaturas majoritárias e proporcionais, com consequências para o futuro de mulheres e outras minorias na política, assim como indagações legais e conceituais sobre o fenômeno de candidaturas laranja. Desde a adoção da lei de cotas de candidaturas em 1997, partidos vêm praticando um jogo de gato e rato com tribunais regionais eleitorais e com o TSE, testando os limites de sua atuação para ver até onde podem chegar sem que sejam punidos. Mudanças nas regras eleitorais e interpretações das leis pelos tribunais eleitorais criam um momento em 2022 onde uma tentativa de aumentar as chances de mulheres serem eleitas pode mais uma vez ver partidos se adaptando para mudarem minimamente o status quo.
Ações para aumentar o número de mulheres na política
O pronunciamento do ministro Alexandre de Moraes está em linha com a ideia de conferir maior equilíbrio na participação de gênero na política. Na tentativa de ampliar a inclusão de mulheres – consideradas de forma plural e multifacetada – na política, diversas medidas foram adotadas: a primeira delas foi a cota de candidaturas. Em 1997, a redação do art. 10, §3º da Lei 9.504 estabelecia que “cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo”. Dez anos depois, a norma se mostrou pouco efetiva tanto no aumento de candidaturas femininas para os cargos proporcionais (entre 1998 e 2006, a proporção de mulheres entre as candidaturas subiu de 10% para 13%) quanto no aumento do número de deputadas federais eleitas (no mesmo período,, a proporção de eleitas ficou entre 9 e 10%).
Para sanar este problema, em 2009, o dispositivo que orientava a regra das cotas de gênero foi alterado pela Lei Federal nº 12.034, e passou a ter a seguinte redação: “cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo”. A mudança do comando da norma, de “deverá reservar” para “preencherá”, teve efeitos importantes para o órgão de fiscalização, o TSE, que entendeu que a partir de então a adoção das cotas passou a ser obrigatória.
Mais recentemente, depois da proibição de doações eleitorais por parte de empresas e da criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a obrigatoriedade de ao menos 30% dos recursos do Fundo Partidário voltados ao financiamento de campanhas serem destinados às campanhas eleitorais de mulheres. Ao ser questionado sobre a inconstitucionalidade da norma que estipulava um percentual mínimo de 5% e máximo de 15% da utilização do Fundo Partidário para as campanhas de mulheres, em março de 2018, o STF entendeu que o piso deveria ser de 30%, acompanhando o percentual mínimo de candidaturas para cada gênero nas listas dos partidos ou coligações para cargos de representação proporcional e o teto foi abolido, devendo o percentual do financiamento acompanhar, proporcionalmente, o percentual das candidaturas femininas. Vale dizer, candidaturas femininas tanto a cargos proporcionais quanto majoritários.
Posteriormente, o TSE foi consultado sobre se a decisão do STF poderia também ser aplicada à distribuição do FEFC e à distribuição dos tempos de propaganda eleitoral no rádio e na televisão, ao que respondeu de maneira positiva. Nesse sentido, a Justiça Eleitoral determinou o percentual mínimo de 30% para ambos os casos, na linha da orientação firmada pelo STF no exame da ADI 5617. E na hipótese de percentual superior de candidaturas, impõe-se o acréscimo de recursos do FEFC e do tempo de propaganda na mesma proporção. Na resposta à consulta, não fica claro se as cotas de gênero deveriam ser aplicadas a candidaturas a eleições majoritárias ou proporcionais, mas se entendermos que o Tribunal seguiu a orientação firmada pela decisão do STF, parece que a diretriz é a mais aberta possível.
Considerando-se esse entendimento, tais decisões parecem não ter acompanhado exatamente a lei que estabelece as cotas eleitorais de gênero no que versa sobre a aplicação às candidaturas proporcionais, permitindo que as cotas de financiamento abarcassem tanto candidaturas a eleições proporcionais quanto a majoritárias. Portanto, partidos podem focar no financiamento de mulheres candidatas em cargos majoritários, cabeças de chapa ou não, o que pode ter um efeito negativo no financiamento de mulheres candidatas a deputada estadual e federal. Isso é especialmente impactante no contexto político brasileiro, onde o sistema de lista aberta e o alto número de partidos estabelece um panorama eleitoral onde o financiamento de campanha é essencial para uma eleição bem-sucedida.
Em 2020, as regras de financiamento eleitoral passaram a considerar também as características étnico-raciais das candidaturas na distribuição dos recursos de campanha pelos partidos políticos. O TSE decidiu pela distribuição dos recursos (Fundo Partidário, FEFC e tempo de rádio e TV) na exata proporção de candidaturas de mulheres negras e brancas e de homens negros. Isso significa dizer que depois da repartição dos recursos para homens e mulheres, o financiamento eleitoral pelos partidos deve observar a exata proporção de candidaturas de mulheres negras e brancas, garantindo, assim, que mulheres negras também tenham apoio financeiro para a corrida eleitoral. Mas, de novo, as decisões não fornecem elementos claros para saber se tais regras se aplicam a candidaturas majoritárias e proporcionais, tampouco se é necessário distribuir os recursos entre todas as candidatas ou em uma só.
Por fim, em 2022, uma nova regra entra em vigor: a da contagem em dobro dos votos a mulheres e pessoas negras no cálculo dos fundos partidário e eleitoral. Mas, como apontado por Débora Thomé, o baixo percentual de candidaturas de mulheres ao Congresso Nacional e o alto número de mulheres vices nas chapas majoritárias, que devem receber parte substancial do financiamento obrigatório em 2022, indicam que a estratégia dos partidos será concentrar o apoio em poucas candidatas a deputada federal, ou seja, naquelas que têm maior visibilidade.
O fenômeno das candidaturas laranja
O número de mulheres no poder no Brasil é pífio. No âmbito das eleições proporcionais, mulheres são hoje 16% das vereadoras, 15% das deputadas estaduais, e 15% das deputadas federais. Este percentual de deputadas federais coloca o Brasil bem abaixo da média mundial de mulheres no parlamento, que é de 26,4% e na 146a posição no ranking mundial de mulheres nos parlamentos do mundo. Os ganhos desde 1997 não tem sido o que os idealizadores da lei de cotas imaginaram, já que ainda estamos longe dos 30% de mulheres nessas posições.
Um dos motivos para essa falha vem de uma falta de compromisso dos partidos políticos no cumprimento da lei. Historicamente, partidos não chegam a nomear o mínimo de 30% de candidatas, e constantemente colocam mulheres em suas listas partidárias sem dar o apoio necessário para ter uma campanha bem-sucedida, ou pior, colocam na lista o nome de mulheres que não fazem campanha e acabam recebendo zero, um, ou um número muito pequeno de votos.
A evolução do fenômeno das candidaturas laranja segue as mudanças na lei de cotas. As estratégias dos partidos para burlarem ou ignorarem o espírito da lei começa já em 1998. Mesmo sem chegar perto dos 30% de candidaturas no primeiro ano da lei de cotas (foram 13,1% de mulheres candidatas às assembleias legislativas e 10,3% de candidatas à câmara federal), a proporção de sucesso (mulheres eleitas dividido pelo total de candidatas) cai significativamente entre 1994 e 1998, o que indica um número maior de candidatas sem chances de vencer. Essa proporção de sucesso continua caindo a cada eleição, e quanto mais candidatas, menor é a proporção de vencedoras.
Figura 1. Proporção de sucesso de candidaturas de mulheres
Fonte: dados do Tribunal Superior Eleitoral
A surpresa não vem do mero fato de mulheres não estarem vencendo, já que as eleições no Brasil são muito competitivas. A surpresa vem do crescimento do que a mídia chama de candidaturas laranja. Tais candidaturas são um fenômeno múltiplo, que vem ganhando contornos ainda mais complexos ao longo do tempo. Porém, não existe, nem na ciência política nem no direito eleitoral, uma definição clara do que é uma candidatura laranja.
WYLIE; SANTOS e MARCELINO, 2019, usam o termo candidatura extremamente não viável para explorar o fenômeno. Tais candidaturas são aquelas que recebem menos de um por cento dos votos recebidos pela última candidatura bem-sucedida (eleita) no estado. Seguindo essa lógica, os autores calculam que 34% das candidaturas femininas entre 1994 e 2014 são extremamente não viáveis, enquanto 12% das candidaturas masculinas caem na mesma categoria. É importante notar que, nesta análise, o número de mulheres com candidaturas não viáveis cresce de 13,5% das candidaturas em 1994 para 48,6% em 2014, enquanto o número de homens considerados candidatos não viáveis passa de 7,3% em 1994 para apenas 14,1% em 2014.
Conectando candidaturas laranjas àquelas extremamente não viáveis, os autores ponderam que existem pelo menos quatro tipos de candidaturas laranja, segundo as dimensões de legalidade e intencionalidade: laranjas em licença (servidoras/es públicas/os que não fazem campanha, pois usam sua candidatura ou para tirar férias de dois meses financiadas pelo Estado, ou para trabalhar na campanha de outra pessoa), laranjas não consensuais (que têm suas candidaturas registradas por funcionários do partido sem seu consentimento, sendo comum, neste caso, o uso dos nomes de algumas mulheres sem seu consentimento por partidos que precisavam de candidatas para que suas listas de candidatura estivessem em conformidade com a cota); laranjas ingênuas (são mulheres filiadas que são solicitadas pelos dirigentes do partido a colocar seu nome na lista e realmente fazer uma campanha para valer, mesmo sem receber apoio da agremiação); e as laranjas estratégicas (candidaturas extremamente inviáveis que representam uma estratégia deliberada por parte das/os candidatas/os, que buscam se candidatar mesmo sabendo que vão perder, mas essa eleição pode fazê-las/os conhecidas/os e levá-las/os a ganhar uma eleição futura).
Adicionalmente, surgiram também as candidatas laranjas usadas para desvio de verbas eleitorais dos fundos públicos para candidatos homens, fenômeno identificado nas eleições de 2018, quando passou a valer pela primeira vez a regra das cotas de financiamento eleitoral para mulheres. Com a adoção das cotas de financiamento para pessoas negras, o mesmo pode ocorrer em relação a essas candidaturas.
Todos esses modelos de candidaturas desafiam o espírito da lei de cotas e configuram uma aplicação equivocada das cotas eleitorais de gênero. A má aplicação desta regra representada pelo fenômeno das candidaturas laranjas é, portanto, um obstáculo significativo à inserção de mais mulheres na política.
E na ausência de uma definição legal do que são candidatas laranjas, cabe ao Judiciário interpretar o seu significado e definir seus contornos. Vale dizer que como não há uma definição legal para a conduta, tampouco há uma sanção previamente estabelecida. Nesse cenário, a maioria dos julgados sobre o assunto não reconhece a sua existência de candidaturas laranjas, o que é justificado pela ausência de provas.
Há apenas 6 dos 93 processos sobre laranjas julgados pelos tribunais eleitorais entre 1997 e novembro de 2018 que terminam por reconhecer a existência de candidaturas fictícias, conforme apontam RAMOS et al., 2020. E nesses poucos casos, a Justiça eleitoral não apresenta critérios claros sobre o que é uma candidatura laranja, pois os elementos que as caracterizam variam caso a caso. A ausência de uma definição clara e uniforme, aplicável a todos os casos, prejudica sobremaneira as candidatas, visto que elas não têm como saber exatamente como se proteger para evitar ou se defender de eventual processo judicial proposto contra elas. Essa indefinição – legal e jurisprudencial – sobre o que é uma candidatura laranja acaba por beneficiar os partidos políticos que atuam de forma estratégica, testando os limites das instituições de fiscalização das cotas eleitorais de gênero, como o Ministério Público e a Justiça Eleitoral.
Conclusão
O fenômeno de candidaturas laranja ganhou espaço nos debates políticos atuais, porém ainda existem questões conceituais e legais a serem equacionadas. As mudanças nas leis eleitorais em 2022 trazem a possibilidade de mulheres receberem mais recursos de seus partidos, mas se o passado serve como exemplo, provavelmente veremos mais uma vez os partidos testarem os limites legais e éticos no apoio de candidaturas de mulheres para as assembleias legislativas e a câmara federal. É fundamental, portanto, continuar o desenvolvimento conceitual e empírico do que entendemos como candidaturas laranja, em prol de uma maior segurança jurídica para as atrizes e atores envolvidos no jogo eleitoral de modo a garantir a consolidação de um sistema representativo mais diverso e justo.