Renato Francisquini
Construção das candidaturas
Após dezesseis anos governando o estado da Bahia, o Partido dos Trabalhadores vê sua posição ameaçada por um herdeiro do mais tradicional clã político do estado, a família Magalhães. Pesquisas recentes evidenciam a chance de ACM Neto (União Brasil) vencer as eleições deste ano já no primeiro turno. Neto, que foi deputado federal (2003-2013) e prefeito de Salvador (2013-2020), enfrenta o petista Jerônimo Rodrigues (PT), coordenador da campanha vitoriosa pela reeleição de Rui Costa para o governo em 2018, ocupando desde então a Secretaria de Educação do estado. O terceiro candidato mais bem posicionado é o deputado e ex-ministro da cidadania do governo Bolsonaro, João Roma (PL)[1] .
Para entender o cenário, vale a pena observar como se deu a montagem das principais candidaturas e avaliar a sua relação com a disputa presidencial. Após duas gestões bem avaliadas na prefeitura da capital, ACM Neto vem há algum tempo construindo as condições para concorrer à cadeira que já foi ocupada por seu avô em três mandatos (dois deles por indicação da ditadura militar, e o último, entre 1991 e 1994, pelo voto popular). O candidato, que cogitou concorrer ao pleito de 2018, acabou adiando a sua pretensão por ter então previsto uma derrota quase certa para o governador Rui Costa (que, de fato, venceu as eleições daquele ano com mais de 75% dos votos no primeiro turno). Embora tenha ficado sem cargo desde o fim de seu segundo mandato (2020), Neto manteve o seu protagonismo no âmbito partidário, participando ativamente da fusão entre o DEM, partido que presidia naquele momento, e o PSL, partido que acolhera Bolsonaro na disputa à Presidência e do qual o presidente havia acabado de se desfiliar.
A virtù de construir a candidatura com esmero e aguardando o momento em que a fortuna parecia lhe ser favorável ajuda a explicar por que o herdeiro político de Antônio Carlos Magalhães começou a campanha com boa vantagem sobre o seu concorrente direto. Jerônimo não foi a opção inicial do partido que governa a Bahia desde 2007. O nome natural do Partido dos Trabalhadores para concorrer à sucessão de Rui Costa era o do ex-governador, Jaques Wagner, cuja gestão no governo do estado foi muito bem avaliada pela população – tanto que conseguiu fazer sucessor o seu secretário da Casa Civil –, tendo sido eleito para o Senado em 2018 com quase 4 milhões de votos. Mas o que, afinal, levou o PT a escolher novamente para concorrer ao governo um candidato ainda desconhecido dos baianos em vez de um ex-governador com a popularidade de Wagner? Essa difícil urdidura remonta à chapa que governou o estado entre 2015 e o presente, que unia o PT e o Progressistas (PP), do vice João Leão. A dificuldade em articular, em 2022, uma candidatura que mantivesse o partido de Leão, aliado de Bolsonaro no âmbito federal, além do PSD, aliado há alguns anos do PT na Bahia, levou à necessidade de uma composição alternativa. Considerando a exigência de que Rui Costa se desvinculasse do governo para concorrer ao Senado, eleição para a qual seria franco favorito, o estado seria governado até o fim do ano pelo PP de João Leão. A fim de evitar que os recursos do governo baiano pudessem ser mobilizados para favorecer os candidatos a deputado pelo PP – e até eventualmente o atual presidente –, Rui Costa decidiu permanecer no cargo até o fim de seu mandato. Wagner, da mesma forma, seguiu no Senado. Ao PT coube, então, indicar o ex-secretário de educação, mantendo o apoio do PSD, que indicou Otto Alencar, com destacada participação na CPI da Covid, para concorrer a um novo mandato no Senado Federal.
Diferentemente do que observamos em outros estados, a disputa na Bahia, já parece claro agora, não reflete exatamente a contenda presidencial. Tendo em vista a forte rejeição ao atual presidente no estado, ACM Neto preferiu manter uma saudável distância em relação a Bolsonaro. Curiosamente, o candidato que recebe o apoio do presidente é o ex-chefe de gabinete de Neto na Prefeitura de Salvador. João Roma, hoje filiado ao PL, foi eleito pelo Republicanos, em 2018, para a Câmara dos Deputados, tendo mantido forte relação política com ACM Neto. Em fevereiro de 2021, porém, decidiu assumir a pasta da Cidadania do governo Bolsonaro. Afastado em definitivo do ex-prefeito, Roma construiu a candidatura por sua atuação na implementação do Auxílio Emergencial (e, posteriormente, do Auxílio Brasil), a cargo de sua pasta no ministério. Além disso, a candidatura no estado foi desde sempre considerada fundamental para que o atual presidente não ficasse sem um palanque no principal colégio eleitoral do Nordeste (a Bahia responde por 1 de cada 4 eleitores da região), onde enfrenta inúmeras dificuldades e forte rejeição do eleitorado.
Formação das coligações
A formação das coligações para a disputa estadual reforça a sensação de que a divisão que encontramos no cenário nacional, entre Bolsonaro e o ex-presidente Lula, não se reflete na eleição baiana. ACM Neto conseguiu atrair para a sua candidatura um número expressivo de partidos que concorrem entre si no âmbito nacional e em outros estados. Estão com ele o Republicanos, que tem a candidata a vice, Ana Coelho, o PP, que indicou Cacá Leão, filho do ex-vice governador, para a vaga no Senado, PSDB, Cidadania, PDT, PTB, PODEMOS, PSC, DC, PRTB, Solidariedade e PMN[2] . Com habilidade política, Neto alcançou 4 minutos e 39 segundos no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral, um minuto a mais do que o candidato do PT. É interessante notar que os candidatos aos cargos legislativos dos partidos que compõem a coligação do ex-prefeito têm, via de regra, usado parte de seu tempo de apresentação no HGPE para desconstruir a imagem de Jerônimo, sugerindo ter o então secretário falhado em sua gestão na Educação. A estratégia indica cautela da campanha de ACM Neto, sobretudo pelo fato de o PT ter alcançado a vitória no primeiro turno contra herdeiros políticos do Carlismo, tanto em 2006 quanto em 2014, quando as pesquisas indicavam justamente o oposto.
Mesmo tendo nas mãos o governo baiano há quase 16 anos e contando com a forte popularidade de Lula no estado, o PT não conseguiu manter a coligação que lhe assegurou êxito em eleições anteriores. É interessante perceber que, a despeito dos conflitos que se desencadearam sobretudo a partir do controverso processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (2016), o PT baiano havia sido capaz, até este ano, de manter coesa a sua coalizão. A chapa de Jerônimo Rodrigues conta com o MDB, que indicou Geraldo Júnior, presidente da Câmara dos Vereadores da capital, o PSD, de Otto Alencar, PSB, PC do B, PV e Avante. Por certo não se trata de uma aliança desprezível, afinal, garantiu a Jerônimo uma boa fatia do horário eleitoral e um número bastante razoável de partidos. Porém, diferentemente de Rui Costa, que, embora desconhecido da maioria do eleitorado em 2014, fora deputado e tinha um bom trânsito com os prefeitos do interior, a candidatura atual teve de ser construída com a campanha oficial em vias de ganhar as ruas. Nesse contexto, enquanto o ex-prefeito da capital já circulava pelo estado alinhavando a sua candidatura e costurando apoios, o PT continua fazendo um esforço para tornar Jerônimo um nome conhecido dos eleitores e identificado com o ex-presidente Lula. A discrepância entre a disputa nacional e a campanha estadual não contribui nesse sentido. Enquanto ACM Neto trabalha de certo modo para se afastar da polarização entre Bolsonaro e Lula, apresentando-se como a terceira via que não se viabilizou nacionalmente, a campanha do PT luta para construir uma polarização entre seu candidato e ACM Neto[3]. Nota-se, portanto, que se trata de um jogo em duas frentes: de um lado, fomentar a popularidade do candidato e identificar sua imagem à de Lula; e, de outro, engendrar uma polarização que não parece natural entre Jerônimo e o ex-prefeito. Não é por mera coincidência que, assim como mencionamos no caso da campanha de Neto, a estratégia se reproduz também no horário eleitoral dos candidatos ao legislativo. Os candidatos dos partidos que apoiam Jerônimo, antes de apresentar seus nomes, números e propostas, identificam-se como “do time de Otto, Jerônimo e Lula” e lembra aos eleitores que ACM Neto afirmou certa feita que, para ele, “tanto faz Lula ou Bolsonaro” – o slogan foi incorporado até mesmo ao jingle da campanha [4].
O terceiro postulante, ligado nacionalmente ao bolsonarismo, não conseguiu produzir uma frente mais robusta, a despeito do forte investimento que o governo federal tem feito para fortalecer a sua candidatura no estado. João Roma tem ao seu lado na disputa, além do PL, o PMB, da vice Leonídia Umbelina, o PROS e o AGIR (a candidata ao Senado, Raíssa Leal, é também do Partido Liberal). A campanha de Roma no Horário Eleitoral Gratuito tem desafio semelhante ao de Jerônimo Rodrigues, isto é, tornar o seu candidato uma figura conhecida do eleitorado e identificá-lo com o atual presidente. Com um entrave adicional, nesse caso: ao contrário de Lula, a identificação com o candidato à Presidência pode não contribuir para que o ex-ministro se viabilize como alternativa a Neto e Jerônimo.
Pesquisas de intenção de voto
As pesquisas de intenção de voto publicadas até o momento, conforme mencionamos, indicam o fim da hegemonia do Partido dos Trabalhadores no estado da Bahia. Não obstante o ex-presidente Lula registre cerca de 60% das intenções de voto entre os baianos, contra apenas 20% de Jair Bolsonaro [5], Jerônimo Rodrigues não foi bem-sucedido em angariar essa preferência para sua candidatura. Pesquisa do Datafolha realizada entre 22 e 24 de agosto registrou ACM Neto com 54% das intenções de voto, Jerônimo com 16% e João Roma com 8%.
Por outro lado, os levantamentos mais recentes mostram certa movimentação do eleitorado baiano na preferência entre os dois candidatos que lideram as pesquisas. Novamente no Datafolha, desta vez em pesquisa realizada entre os dias 12 e 14 de setembro, ACM Neto perdeu 5 pontos (ficando com 49%) e Jerônimo cresceu expressivos 12 porcento (chegando a 28%). João Roma oscilou um ponto para baixo (7%).
Restando pouco menos de vinte dias para o esperado 2 de outubro, considerando a enorme popularidade do ex-presidente Lula e a aprovação das gestões petistas no estado, a prudência sugere ser arriscado afirmar que a eleição para o governo da Bahia será definida no primeiro turno. Há que se considerar, ainda, que nas eleições de 2006 e 2014, candidatos herdeiros do Carlismo despontavam como favoritos à vitória no primeiro turno, mas o resultado das urnas surpreendeu e o PT virou nos últimos dias de campanha. Vale a pena acompanhar as próximas pesquisas a serem divulgadas para a disputa na Bahia. Nas próximas semanas ficará mais claro se a estratégia petista surtirá efeito e será capaz de repetir o êxito de anos anteriores ou ao menos levar a disputa para o segundo turno.
[1]Além dos três principais candidatos, concorrem ainda ao pleito Giovani Damico (PCB), Kleber Rosa (PSOL) e Marcelo Millet (PCO).
[2]Esta e as demais coligações foram obtidas através do site do TRE-BA (http://tre-ba.jus.br – acesso em 13 de setembro de 2022).
[3]Faço referência aqui à entrevista do Prof. Paulo Fábio Dantas Neto (DCP-UFBA) no podcast O Assunto, do G1, em 12 de setembro de 2022: https://open.spotify.com/episode/5qLA9CvnaVuAqCSwM2kI9F?si=Hk_cXS9fQlGtdQgDcqug5A&context=spotify%3Ashow%3A4gkKyFdZzkv1eDnlTVrguk&nd=1
[4]É importante mencionar que o TRE-BA proibiu a campanha do PT no estado de associar ACM Neto a Bolsonaro. Ver: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/por-unanimidade-pleno-do-tre-proibe-pt-de-associar-acm-neto-a-bolsonaro/ (acesso em 13 de setembro de 2022)
[5]As pesquisas Datafolha e IPEC divulgadas, respectivamente, em 25 e 26 de agosto indicaram resultado idêntico.