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A Secom no governo Bolsonaro: o que há de institucional em uma presidência “twitteira”?

Raquel Novais e Alessandra Costa

 

Nem tudo é o que parece quando se trata da política de comunicação de Jair Bolsonaro. A habilidade e a audiência do presidente brasileiro nas redes digitais, como as plataformas Facebook, Twitter e Youtube, dão uma pista segura do quanto essa é uma arena na qual o chefe do Executivo tem uma performance superior à de muitos dos seus críticos ou adversários políticos. Ao menos na arena virtual, a mensagem que salta aos olhos é: “Presidential power is the power to persuade” (Neustadt, 1960:10).

 

Contudo, ao mobilizar as redes sociais aparentemente como a principal estratégia de comunicação, e usá-las exaustivamente, Bolsonaro não deixou de lado os muitos recursos institucionais de que dispõe no papel de chefe do Executivo. Sejam eles financeiros ou estratégicos, tais recursos se materializam em estruturas, programas e ações voltados à Comunicação Institucional da Presidência da República.

 

Essa constatação exige que sejam qualificados os argumentos sobre a performance presidencial na arena digital. De fato, o personalismo é um atributo fortemente identificável nessa arena, mas a atuação de Bolsonaro na comunicação não parece se limitar à uma suposta habilidade presidencial de liderança e persuasão (Idem). É difícil crer que o chefe do Executivo esteja prescindindo do uso de estratégias e recursos institucionais de comunicação.

 

É fato que a gestão de Bolsonaro tem privilegiado a formação de coalizões ad hoc, debatendo-se contra o desenho institucional brasileiro (Inácio e Novais, 2019). Sabe-se, também, que o presidente recorre ao going public (Kernell, 1997) digital, ou seja, à mobilização do recurso informal de ir a público, usando suas redes sociais. Resta saber se por trás desse movimento haveria uma tentativa de contornar os problemas advindos de uma estratégia não coalizacional e ampliar as chances de sucesso na aprovação das iniciativas legais. Faria sentido assumir os custos de uma atuação personalista de forma isolada, ou seja, sem o amparo da estrutura de comunicação institucional?

 

A resposta a essa questão deve levar em conta que a Secretaria de Comunicação (Secom) é um órgão chave, capaz de ser inserido em uma estratégia que combina personalismo sem prescindir da institucionalidade.  Trata-se da estrutura diretamente responsável pela comunicação institucional da Presidência. A fim de desenvolver o tema, observa-se, neste post, o volume de recursos financeiros disponibilizados à essa Secretaria por Bolsonaro, desde o início de seu mandato até o ano corrente (janeiro de 2019 a fevereiro de 2020). A Secom viu seu orçamento ser reduzido, como o próprio presidente alardeou, antes mesmo de tomar posse?

 

Orçamento da Secom: movimento descendente ou ascendente? 

As competências e áreas de atuação da Secom do Poder Executivo Federal não deixam dúvidas quanto à sua importância estratégica. A Secretaria sempre atraiu a atenção pública e a disputa política sobre quem a comanda, pelo fato de, entre outras atribuições, ser a estrutura responsável por “coordenar, normatizar e supervisionar a publicidade e o patrocínio dos órgãos e das entidades da administração pública federal, direta e indireta, e das sociedades sob o controle da União”. A Secom tem à disposição para operar a comunicação institucional da Presidência tanto mecanismos tradicionais – publicidade, patrocínio e imprensa – quanto às novas plataformas tecnológicas de comunicação. Na Figura 1, estão descritas as normativas que estabeleceram a área de jurisdição, estrutura e funções da Secretaria na estrutura do governo Bolsonaro.

 

Figura 1: Secom na estrutura do governo Bolsonaro

 

O corte orçamentário da Secom, previsto pela Lei Orçamentária Anual de 2019, foi amplamente divulgado por Bolsonaro antes mesmo de sua posse. O presidente eleito usou o Twitter para anunciar que não pretendia pleitear aumento nessa verba. Além disso, comprometeu-se com uma redução ainda mais significativa em seu segundo ano de mandato, por meio da revisão de contratos e reavaliação do quadro pessoal da Secretaria.

 

Teria Bolsonaro cumprido sua palavra de reduzir os gastos da comunicação institucional? Passados mais de três anos de governo, qual o montante de recursos disponibilizados à Secom? A análise aqui empreendida está referenciada na etapa de empenho[1] das despesas previstas no orçamento público e geridas pela Secom, entre janeiro de 2019 e fevereiro de 2022.

 

Dados coletados a partir do site Transparência Brasil[2] mostram que, no primeiro ano do governo Bolsonaro (2019), a Secom foi responsável pela gestão de um valor empenhado próximo a R$400 milhões. O montante representa mais que o dobro do orçamento 2019 aprovado pelo Congresso Nacional para a Secretaria e aceito publicamente pelo presidente. Nos anos subsequentes, observa-se uma tendência de crescimento no empenho da despesa cuja unidade gestora é a Secom (Gráfico 1).

 

Gráfico 1: Evolução da despesa empenhada por ano

Brasil: jan/2019-fev/2022

Fonte: elaboração própria a partir do Banco de Dados da pesquisa

 

Entre janeiro de 2019 e fevereiro de 2022, a Secom foi a unidade gestora responsável por uma despesa empenhada da ordem de um bilhão de reais (R$ 1.023.702.200,41), sendo 42,14% desse total no período em que se encontrava na estrutura da Secretaria de Governo, órgão ligado diretamente à assessoria presidencial; e 57,86% após migrar para a estrutura do Ministério das Comunicações. Embora haja variação no volume de recursos, esse dado não sugere que as mudanças da Secom dentro da estrutura do governo estejam relacionadas a alterações significativas da política de comunicação do Poder Executivo.

 

Assim, uma análise mais aprofundada deve levar em conta que a conjuntura política pode ser um fator com maior capacidade explicativa dessa variação. Como exemplo, destacam-se dois movimentos políticos de Bolsonaro. O primeiro deles iniciou-se no período da campanha eleitoral, quando o então candidato prometeu governar com 15 ministérios. Após assumir a Presidência, ao final da transição, esse número chegou a 22 pastas. Assim, a estratégica Secom ficou vinculada à sua assessoria direta, assumindo uma centralização bastante comum em governos anteriores.

 

Outro exemplo data de seu segundo ano de governo, quando, diante da necessidade de garantir apoio no Congresso para a aprovação de suas agendas, especialmente com os partidos do chamado Centrão, o presidente cria novas pastas para atender aos interesses dos partidos. Nesse momento, junho de 2020, ele recria o Ministério das Comunicações e nomeia para a pasta Fábio Faria, deputado federal, então filiado ao PSD, e que recentemente se filiou ao Progressistas (PP).

 

Ações comunicacionais em prol da democracia: um “apagão”? 

A Secom é responsável por executar despesas relacionadas a ações e programas orçamentários vinculados à comunicação de governo. Importante ressaltar que essa classificação concentra valores que não têm uma vinculação específica – ou seja, o Executivo pode fazer escolhas discricionárias quanto ao uso desse recurso, cuja origem principal é a arrecadação de impostos.

 

Até fevereiro de 2022, o governo Bolsonaro mobilizou, por meio da Secom, um montante empenhado dirigido a 20 programas orçamentários. Quase 58% do valor foi destinado à categoria programática denominada Gestão, Manutenção e Serviços do Estado (que contempla as ações voltadas ao funcionamento do Estado, incluindo, portanto, os gastos para a atuação governamental), especificamente ao Programa de Gestão e Manutenção do Poder Executivo (GRÁFICO 3).

 

Gráfico 3: Valores empenhados por programa orçamentário

 Brasil: jan/2019-fev/2022

Fonte: elaboração própria a partir do Banco de dados da pesquisa

 

O segundo programa que se destaca trata de um eixo temático que, nos PPAs anteriores, esteve relacionado à uma política social. Desde 2012, a programação orçamentária apresentada pelo Executivo coloca ênfase no programa Democracia e Aperfeiçoamento da Gestão Pública que, em linhas gerais, dirige o foco para a participação social, a transparência e a comunicação com os cidadãos.

 

As despesas relacionadas a esse programa, desde a posse de Bolsonaro, foram concentradas no ano de 2019. Significa dizer que os valores empenhados para esse eixo representam mais de 37% do montante global para o período – o que não é nada trivial. Contudo, essa não foi uma escolha do atual presidente. Havia uma previsão orçamentária estipulada pelo PPA 2016-2019 voltada para o programa, que foi basicamente cumprida no primeiro ano do atual governo.

 

Em 2020, Bolsonaro apresentou o novo PPA (2020-2024) sem nenhuma menção ao programa Democracia e Aperfeiçoamento da Gestão Pública. As ações voltadas a esse eixo foram eliminadas ou, conforme declaração do Ministério da Economia, “os programas do PPA foram reformulados em razão de mudança de metodologia e agora há mais realismo fiscal“. Já no portal da Secom, há menção direta ao programa, embora o mesmo não conste no planejamento orçamentário apresentado pelo PPA.

 

Comunicação ou publicidade?

Os dados mostram que os recursos gerenciados pela Secretaria são direcionados a duas principais ações orçamentárias (de um total de 12), quais sejam, Comunicação Institucional e Publicidade de Utilidade Pública.  Ao longo de três anos e dois meses de mandato, a escolha do governo Bolsonaro foi claramente voltada para a Comunicação Institucional (Gráfico 3). Nota-se que 77% das despesas empenhadas no período estiveram vinculadas a essa categoria de Ação Orçamentária. Uma fatia consideravelmente menor foi dedicada à Publicidade de Utilidade Pública (13,9%). São justamente nessas ações que são contemplados os recursos direcionados aos contratos com as agências de Publicidade e Propaganda.

 

Gráfico 4: valores empenhados por ação orçamentária

 Brasil: jan/2019-fev/2022

Fonte: elaboração própria a partir do Banco de dados da pesquisa

 

No primeiro ano de governo, as agências que atendiam o governo anterior – NBS, Calia Comunicação e Artplan – tiveram seus contratos mantidos. Já no Ministério das Comunicações, a Secom lançou, em 06 de agosto de 2020, o edital de Concorrência (001/2020-Secom), para a Contratação de Serviços de Publicidade Prestados por Intermédio de Agências de Propaganda, com um valor previsto de R$270 milhões. No item 3 do Edital, onde são estabelecidos o valor e a indicação dos recursos orçamentários, encontram-se exatamente as ações acima mencionadas, isto é, Comunicação Institucional e Publicidade de Utilidade Pública.

 

Na seção que aborda o objeto do Contrato, está previsto que a proposição estratégica das ações publicitárias deve contemplar tanto os veículos de comunicação e divulgação tradicionais (offline) como os digitais (online). Como publicado no Diário Oficial da União (28/08/2021), a Secom suspendeu o Edital e renovou o contrato com as agências que já vinham prestando os serviços ao governo. Em setembro de 2021, o Ministério das Comunicações lançou o Edital de Concorrência Nº 1/2021 para a contratação de Agências de Propaganda, com valor previsto de R$450 milhões. O edital sofreu retificações e recebeu recursos de várias agências concorrentes.

 

A publicação deste Edital e seu andamento receberam grande atenção dos órgãos de imprensa. Afinal, o valor licitado no último trimestre de 2021 levanta questionamentos relativos ao possível uso desses recursos já no último ano do governo, o que também significa ano com eleições presidenciais.

 

O lado “twitteiro” da Secom!

De forma oposta ao afirmado publicamente pelo presidente Bolsonaro, a Secom vem desempenhando uma atuação substantiva na gestão de recursos e de estratégias de comunicação no atual governo. O propagado “esvaziamento da Secom”, ao menos no que se refere à despesa gerida, não aponta para uma real inoperância da estrutura. Na verdade, nota-se uma apropriação dos recursos institucionais da Secretaria para reforçar as estratégias “twitteiras” de Bolsonaro.

 

Um caso evidente é a atuação da Secom na pandemia. O Órgão ganhou destaque, mas não pela realização de campanhas educativas, como era de se esperar, dado o seu papel. Ele esteve no centro de denúncias que tratavam do envolvimento em publicidade de conteúdo falso na internet sobre vacinas e remédios ineficazes para o combate ao coronavírus e propagar informações de cunho negacionistas. A CPI da Covid aprovou pedido de quebra dos sigilos telefônico, telemático, bancário e fiscal da Calia Comunicação e a empresa recorreu. O Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cássio Nunes atendeu o pedido da agência e suspendeu a quebra dos sigilos.

 

A Secom, como um órgão institucional, tem participação ativa na comunicação de governo, tanto no ambiente online quanto nos meios tradicionais offline. Portanto, as estratégias de comunicação personalistas típicas de Bolsonaro não têm sido operadas num vazio, restritas ao alcance de público/ engajamento, de forma “orgânica” e desvinculadas da política de comunicação institucional implementada pela Secom. Afinal, as redes sociais, tão mobilizadas pelo presidente, também são objeto de destinação de verba publicitária da Secretaria.

 

Supondo que as estratégias discursivas e/ou performáticas do presidente nas redes sociais não sejam decididas pelas pessoas que ocupam os cargos políticos e técnicos na Secom, ainda assim não se deveria separar analiticamente o papel da Secretaria em relação à essa arena comunicativa, na qual o presidente mostra-se mais à vontade. Embora Bolsonaro recorra, muitas vezes, às suas contas pessoais para transmitir mensagens, o conteúdo levado à público é eminentemente de cunho institucional, dada a natureza de seu cargo. Não foram raras as vezes nas quais publicações nas contas pessoais do presidente foram replicadas nos canais oficiais do governo nos Social Media.

 

Em relação aos investimentos feitos pela Secom em publicidade e propaganda por meio dos veículos de comunicação de massa, há farto material na grande imprensa mostrando a ausência de critérios técnicos na distribuição das verbas publicitárias e possíveis beneficiamentos de determinados veículos em detrimento de outros. Lamentavelmente, em 2017, foi extinto o Instituto de Acompanhamento de Publicidade (IAP)[3], que centralizava todas as  informações sobre compra de mídia feitas pelos órgãos do governo federal. Sem tais registros, fica em aberto a possibilidade de mapear e rastrear, com precisão, o destino de parte significativa do orçamento da Secom.

 

Por fim, considerando-se os recursos disponibilizados para gestão através da Secretaria e sua discricionariedade, era de se supor que a popularidade do presidente, após três anos no poder executivo federal, estivesse em patamares distintos aos atuais. Contudo, ainda que a Secom esteja sendo apropriada pela estratégia personalista do presidente, sabe-se que Comunicação é como a andorinha: sozinha não faz verão.

 

[1]  A execução da despesa pública é composta por três estágios, quais sejam: empenho, liquidação e pagamento (Lei nº 4.320/64).

[2] Valores relativos ao montante empenhado no período foram corrigidos pelo IGP-M, de forma a garantir a correção monetária dos recursos.

[3] O Instituto de Acompanhamento de Publicidade (IAP) foi criado em 1999 e era mantido com recursos oriundos das agências de propaganda que atendiam o governo federal.

 

Referências bibliográficas

INÁCIO, M.; NOVAIS, R. (2019). Um novo Presidente ou um novo Modelo de Governar?. IBEROAMERICANA (MADRID), v. 19

KERNELL, Samuel. Going Public: new Strategies of Presidential Leadership. Congressional Quarterly Inc., Washington, D.C., 3nd ed.1997.

NEUSTADT,  Richard. Presidential  Power:  the  politics  of  leadership. John Wiley & Sons: New York – London, 1960.

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Raquel Novais
É doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), jornalista formada pela PUCMinas e pesquisadora associada do Centro de Estudos Legislativos (CEL-UFMG). Realizou um ano do seu doutorado com bolsa sanduiche na Universidade de Salamanca (Espanha). Raquel Novais é membro da Red De Politólogas - #NoSinMujeres e vive em Colônia (Alemanha).<br />
Alessandra Costa
É doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Brasil) e pesquisadora associada do Centro de Estudos Legislativos (CEL-UFMG). Tem mestrado em Ciência Política na mesma Instituição. Foi investigadora visitante na Universidade de Salamanca (Espanha) e na Universidad de La Republica (Uruguai). É licenciada em Jornalismo pela Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas, Brasil).<br />