Beatriz Costa e Thiago Silame
Em uma democracia, o combate à corrupção talvez seja uma das tarefas mais difíceis de se realizar. Tal tarefa requer a constituição de um arcabouço institucional e legal que permita o controle/fiscalização sobre os atos e ou omissões daqueles que exercem cargos públicos. É notório que no decorrer dos 34 anos de operação da democracia brasileira, sob a influência da Constituição de 1988, o país construiu uma rede de accountability. A fim de responsabilizar agentes públicos pelos seus atos, accountability se ancora na existência de uma ecologia processual, isto é, na existência de instituições burocráticas que são construídas e voltadas para supervisionar, controlar, corrigir e punir ações desviantes do interesse público praticadas por agentes públicos (FILGUEIRAS, 2016).
No nível federal tal rede é composta por Controladoria Geral da União (CGU), Tribunal de Conta da União (TCU), o Ministério Público Federal (MPF); a Polícia Federal (PF) e a Justiça Federal (JF) (ARANTES, 2011; ARANHA, 2015; ARANHA; FILGUEIRAS, 2016). Para obter êxito no combate à corrupção o funcionamento dessa rede deve se dar de forma a possibilitar a interação entre os diversos órgãos. O grau de discricionariedade de ação e de insulamento burocrático desses órgãos também são fatores importantes para evitar que os mesmos sejam passíveis de influências externas que possam impedir o exercício de se combater a corrupção.
A constituição inicial desta rede se deu de maneira processual e tem atuado para evidenciar desvios de condutas de agentes públicos, recuperando ativos financeiros para a União, desbaratando grandes esquemas de corrupção, dentre outros fins. A questão é que jogar luz sobre o fenômeno da corrupção tem influência sobre a percepção que os cidadãos têm sobre o fenômeno. Desta forma, junto à opinião pública a percepção é que a corrupção aumentou no país (AVRITZER, 2012).
O tema da corrupção foi um dos principais a mobilizar o eleitorado na eleição presidencial de 2018. O contexto eleitoral foi marcado por forte sentimento anti política e anti sistema, o que representou uma conjuntura propícia para candidaturas de outsiders, sendo muitas delas vitoriosas em cargos para os Executivos estaduais e no principal cargo em disputa, o de Presidente da República. Os resultados gerais da eleição de 2018 significaram um forte revés para os políticos profissionais e os partidos políticos tradicionais. Este contexto foi propício para a candidatura de Jair Bolsonaro, à época filiado ao Partido Social Liberal (PSL), que soube utilizar a seu favor as efervescências políticas que implodiram no Brasil em 2018. Utilizando-se de um forte discurso moral de combate à corrupção e com a bandeira anti sistema político, Bolsonaro foi democraticamente eleito com o carro-chefe anticorrupção sem ao menos ter um programa de governo concreto que detalhasse os passos para combater a corrupção no país. Destacamos aqui os principais retrocessos nos arcabouços legais e institucionais anticorrupção do Brasil durante o governo do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, segundo a Transparência Internacional Brasil.
Em 2019, no que tange a rede de accountability brasileira, durante o primeiro ano de seu governo, Bolsonaro demonstrou poucos esforços para combater a corrupção no país. Pelo contrário: ações do Poder Executivo Federal foram compreendidas como interferência política em uma das agências chaves de combate à corrupção no Brasil: a Polícia Federal. Ao substituir o chefe do escritório da Polícia Federal do Estado do Rio de Janeiro, Ricardo Saadi, o Presidente Jair Bolsonaro alegou que tal mudança era devida “por problemas de ‘gestão e produtividade’”. Sem providenciar mais explicações, sua atitude foi vista como interferência política em uma gestão que vinha realizando relevantes ações anticorrupção no Estado do Rio de Janeiro. Dentre elas, investigações envolvendo o Senador Flávio Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, e o assassino de Marielle Franco, envolvido com milícias cariocas com ligação com aliados políticos de Jair Bolsonaro.
No âmbito da Receita Federal, as trocas de membros da alta chefia feitas por Bolsonaro podem também ter sido motivadas pelo descontentamento do Presidente com o que o mesmo chamou de “devassa” por parte da Receita Federal aos familiares do Presidente. Outras ações presidenciais interpretadas como interferências foram observadas em outros órgãos do Governo Federal, tais como a transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) para o Ministério da Justiça. O esvaziamento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) também é visto como interferência política. Por fim, no âmbito do Ministério Público Federal (MPF), a nomeação de Augusto Aras como procurador-Geral do MPF violou o acordo tácito de nomeação para o cargo. Desde 2003 a nomeação do procurador-geral do MPF é feita pelo Presidente da República respeitando uma lista tríplice de nomes selecionados através de uma eleição interna feita pela Associação Nacional dos Procuradores da República. Augusto Aras não passou por esse processo.
No âmbito do Congresso, a aprovação da Lei 13.869/2019 não é vista com bons olhos. Sem muitos detalhes, a lei contra abuso de autoridade pode ser compreendida como uma coerção aos agentes da lei, tais como investigadores e procuradores, pois abre brecha para retaliações de indivíduos que estão sob investigação por corrupção. A aprovação da Lei 13.877/2019, voltada para as campanhas eleitorais de 2020, reduz os requisitos de transparência e responsabilização dos partidos políticos, dando brecha para financiamento ilícito de campanhas.
Segundo o relatório da Transparência Internacional Brasil, o panorama anticorrupção não melhorou em 2020. O ano começou com o ex-ministro da Justiça, Sérgio Moro (um dos principais juízes da Operação Lava Jato) resignando o atual cargo na gestão do Presidente Jair Bolsonaro. O ex-Ministro da Justiça alegou que o motivo de sua saída se dava por interferência política do Presidente Bolsonaro na Polícia Federal, em específico, após a demissão de Maurício Valeixo, na época Diretor Geral da Polícia Federal. No âmbito da Controladoria Geral da União, através da Medida Provisória 928/2020, o Presidente Jair Bolsonaro suspendeu os prazos para as solicitações feitas através da Lei de Acesso à Informação sobre os pareceres jurídicos elaborados por ministérios do governo que foram enviados à Presidência da República na sanção ou veto de projetos aprovados pelo Congresso Nacional, tornando-os sigilosos. Ainda no primeiro semestre de 2020, o ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na presença do Presidente Jair Bolsonaro, sugeriu usar a atenção e o foco da mídia e da população para a pandemia da COVID-19 em favor da aprovação de diversas mudanças infra-legais para simplificar a regulação do setor do meio ambiente e outros interesses do governo. As investigações envolvendo filhos do Presidente Jair Bolsonaro, tais como os funcionários fantasmas de Flávio Bolsonaro durante sua gestão no Rio de Janeiro e o esquema milionário da “rachadinha” evolvendo Carlos Bolsonaro, também fazem parte dos retrocessos no combate à corrupção em 2020.
Em 2021, as denúncias de corrupção também recaíram sobre várias condutas adotadas pelo governo Bolsonaro no contexto do enfrentamento à pandemia de Covid-19. O relatório da CPI da Pandemia, conduzida pelo Senado Federal, trouxe fortes indícios de que ocorreu tráfico de influência dentro do Ministério da Saúde (MS), para a compra de insumos necessários ao enfrentamento da Covid-19. A denúncia mais grave envolve a compra de vacinas. O ex-diretor de logística do MS, Roberto Dias, intermediou um balcão de negócios em que estabelecia tratativas com diversos vendedores/atravessadores – que se diziam representantes de laboratórios farmacêuticos – e que tinham interesses em negociar vacinas com o governo federal. Alguns “vendedores” sequer tinham expertise na área de venda de insumos em saúde, como por exemplo um cabo da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG) e um reverendo, presidente de uma associação evangélica. A ideia era embutir no preço das vacinas uma comissão que iria para os “representantes” dos laboratórios e para Oliveira e provavelmente seu padrinho político, o deputado Ricardo Barros. A denúncia envolve o Deputado Ricardo Barros (PP), que na época da CPI era líder do governo, e um possível ato de prevaricação por parte do presidente da República que soube da intermediação de vacinas no MS, através do deputado Luis Mirando (DEM). Entretanto, o presidente não formalizou qualquer tipo de investigação contra Barros ou Oliveira. O relatório da CPI foi encaminhado à PGR. Contudo, o procurador geral da República Augusto Aras vem adotando medidas protelatórias, adiando investigações que possam elucidar indícios de corrupção praticadas pelo governo apontados no relatório. Além disso, Bolsonaro encontra no Deputado Federal Arthur Lira (Progressistas), presidente da Câmara dos Deputados, um aliado importante, que não dá prosseguimento às denúncias de crime de responsabilidade imputados ao presidente. No caso da CPI da Pandemia este sequer recebeu o relatório final da CPI produzido pelo Senado.[1]
O tráfico de influência parece ser uma forte tendência do governo Bolsonaro. Na semana da redação deste texto veio à tona denúncia contra o ministro da educação Milton Ribeiro. A denúncia é que pastores evangélicos intermediaram repasses do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para municípios, mediante pagamentos/propina – que envolviam até mesmo barras de ouro – junto ao ministro (que também é pastor evangélico). Os repasses do MEC não levaram em conta nenhum critério técnico e republicano. O ministro Milton Ribeiro disse ter acionado a CGU em agosto de 2021, mas uma sindicância que investigou apenas a atuação de servidores do ministério não encontrou nenhuma irregularidade, mas o fato é que a denúncia não envolve servidores públicos do MEC e sim o ministro da pasta que atuava a mando do Presidente da República para beneficiar financeiramente e politicamente pastores “lobistas”. No dia 28 de março de 2022, Milton Ribeiro solicitou desligamento da função de ministro e a PF instaurou um inquérito a pedido da CGU. Representativo para ilustrar um texto sobre corrupção no governo Bolsonaro.
A possibilidade da existência de um gabinete paralelo, bem como a possibilidade da existência do Gabinete do Ódio, são alguns dos muitos exemplos de como a atual gestão do Presidente Jair Bolsonaro prejudica a consolidação da democracia no Brasil. Em um governo marcado por escândalos de corrupção, interferências políticas na administração pública, acusações de crimes com responsabilidade fiscal, o Presidente Jair Bolsonaro conquistou o feito de ter, em uma única gestão, acumulado mais de 143 pedidos de impeachment, quase ultrapassando a soma de todos os pedidos de impeachment contra presidentes da República (160 pedidos), de Fernando Henrique Cardoso a Michel Temer. Infelizmente, os danos para a nossa jovem democracia são duros. A esperança está em 2022 e na chance de construir um futuro para o país com líderes que prezam pelos valores democráticos e que apresentem projetos sólidos e viáveis para um Brasil melhor.
Fonte: Pública, 2022.
Notas
[1]CPI da Covid desiste de entregar relatório a Arthur Lira | Política | iG. O presidente da Câmara dos Deputados considerou um absurdo a inclusão de parlamentares nos diversos crimes apontados no relatório final. A medida pode ser vista como uma proteção corporativista, mas também exime o presidente da Casa de examinar os crimes de responsabilidade imputados a Bolsonaro pela CPI da Pandemia.
Bibliografia
ARANHA, Ana Luiza. A rede brasileira de instituições de accountability: um mapa do enfrentamento da corrupção na esfera local. 2015. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil, MG.
ARANHA, Ana Luiza; FILGUEIRAS, Fernando. Instituições de accountability no Brasil: mudança institucional, incrementalismo e ecologia processual. Cadernos ENAP, n. 44, Brasília, 2016.
ARANTES, Rogério B. Polícia Federal e construção institucional. In: FILGUEIRAS, F.; AVRITZER, Leonardo. (Orgs.). Corrupção e sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
AVRITZER, Leonardo. Índices de percepção da corrupção. In: AVRITZER, L; BIGNOTTO, N; GUIMARÃES, J; STARLING, H. M. M. Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
BRASIL. Senado Federal. Relatório Final da CPI da Pandemia. Brasília, 2021. 1287p
FILGUEIRAS, Fernando. Transparency and accountability: principles and rules for the construction of publicity. Journal of Public Affairs, v. 16. n. 2, p. 192-202, 2016.