Isabel Figueiredo, David Marques e Amanda Lagreca
A segurança pública foi um dos principais temas das eleições gerais de 2018. Naquele pleito, diversos candidatos adotaram um discurso para a área pautado na força policial como chave para redução dos altos níveis de violência brasileiros. A campanha de Jair Bolsonaro foi a principal expoente desta linha, assumindo a pauta como prioridade do governo, no que foi acompanhada por alguns dos governadores eleitos, como Wilson Witzel no Rio de Janeiro, que falava em “atirar na cabecinha”, e João Doria em São Paulo, que dizia que a polícia iria “atirar para matar”.
Se, por um lado, o tema foi prioritário nas eleições e seguiu com grande espaço durante os três primeiros anos do governo Bolsonaro é importante, desde já, esclarecer que existe um grande abismo entre os discursos presidenciais e as ações efetivamente implementadas pelo seu governo.
No plano de governo de Bolsonaro, foram apresentados oito pontos para “reduzir os homicídios, roubos, estupros e outros crimes: 1º Investir fortemente em equipamentos, tecnologia, inteligência e capacidade investigativa das forças policiais, 2º Prender e deixar preso! Acabar com a progressão de penas e as saídas temporárias! 3º Reduzir a maioridade penal para 16 anos! 4º Reformular o Estatuto do Desarmamento para garantir o direito do cidadão à LEGÍTIMA DEFESA sua, de seus familiares, de sua propriedade e a de terceiros! 5º Policiais precisam ter certeza que, no exercício de sua atividade profissional, serão protegidos por uma retaguarda jurídica. Garantida pelo Estado, através do excludente de ilicitude. Nós brasileiros precisamos garantir e reconhecer que a vida de um policial vale muito e seu trabalho será lembrado por todos nós! Pela Nação Brasileira! 6º Tipificar como terrorismo as invasões de propriedades rurais e urbanas no território brasileiro. 7º Retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81. 8º Redirecionamento da política de direitos humanos, priorizando a defesa das vítimas da violência”.
Esses pontos, e as considerações que os precedem no programa, já apontavam para uma inflexão na base das políticas públicas de segurança que seriam implementadas pelo governo Bolsonaro: a lógica da segurança cidadã, sustentada na conciliação entre prevenção e repressão qualificada, seria substituída por uma concepção mais focada na atuação policial e no uso da força. Não há no programa, por exemplo, nenhuma palavra sobre medidas preventivas e o Município, ente federativo fundamental na prevenção, sequer é considerado como ator relevante na governança da pauta.
Se, no programa, há uma redução na dimensão das políticas de segurança, o início do governo é marcado por dois discursos políticos que apontam para os impactos que essa redução trará. O primeiro discurso é o presidencial, centralizado em dois temas: a facilitação do acesso às armas de fogo e a “proteção” dos profissionais de segurança, mediante o instituto do excludente de ilicitude, que ficou conhecido como “licença para matar”. O segundo ator a nortear a pauta da segurança é o Ministro da Justiça, Sérgio Moro, que, apesar de defender o excludente de ilicitude, tinha repertório restrito a ações, em tese, voltadas ao combate à corrupção.
Prioridades que perpassaram a atuação do governo federal ao longo dos vinte anos anteriores, como cooperação interfederativa, capacitação dos profissionais de segurança, qualificação na produção de dados e estatísticas, implementação de projetos sociais e policiais de redução da violência e foco na redução da criminalidade violenta foram, neste primeiro momento, deixados de lado e substituídos pelos discursos mencionados e, em termos concretos, pelo envio ao Congresso Nacional do chamado “projeto de lei anticrime”.
Aqui é importante lembrar que, em 2018, o governo Temer havia criado um Ministério específico para gerir a atuação federal na área da segurança pública. Dentre outras ações, o Ministério havia produzido três legados importantes: a) a criação do sistema único de segurança pública, b) alterações na legislação do Fundo Nacional de Segurança Pública, que passou a ter lastro orçamentário permanente; e c) a edição de uma política e um plano decenal para a área.
Ou seja, ainda que o repertório governamental fosse bastante limitado, havia uma série de medidas a serem implementadas pelo novo governo, por obrigação legal, como a estruturação de um sistema de governança da política de segurança e a implementação do plano decenal.
Nada disso foi priorizado, ainda que os discursos políticos sobre segurança – em especial os destinados a parcelas específicas do eleitorado do Presidente, como policiais e atiradores – tenham se mantido fortes.
A principal (e talvez única) confluência entre discurso e prática desde o início do governo diz respeito a ações para ampliação do acesso às armas de fogo. Já na primeira quinzena do governo foi editado o primeiro decreto sobre o tema – ato inicial de uma série composta, até agora, por mais de trinta atos normativos. Desde esse decreto inicial, várias alterações já foram feitas como, por exemplo, a ampliação na quantidade de armas de fogo que cidadãos comuns e CACs podem ter, o aumento dos calibres liberados, a ampliação do acesso à pólvora e a redução de mecanismos de rastreamento e controle de armas e munições, dentre outras medidas.
A ruidosa saída do Ministro Sérgio Moro levou ao cargo o Ministro André Mendonça, até então Advogado Geral da União. Assim como Moro, Mendonça não tinha nenhum repertório sobre as pautas da segurança pública e, também como Moro, utilizou a passagem pelo Ministério para alavancar pretensões políticas maiores – se o primeiro atualmente é presidenciável, o segundo conseguiu alcançar a disputada cadeira de Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Ainda que não tivesse um programa claro e um discurso mais complexo para a área de segurança pública, é importante resgatar o papel fundamental que a própria máquina pública exerceu durante o governo Bolsonaro.
Até 2018, além da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e do Departamento Penitenciário Nacional, o principal órgão do governo federal na gestão da área era a Secretaria Nacional de Segurança Pública – Senasp. A partir de 2019 a Senasp foi sendo dividida e hoje existem três Secretarias que gerem a área: a Senasp, a Secretaria de Gestão e Ensino em Segurança Pública – Segen e a Secretaria de Operações Integradas – Seopi.
Esses órgãos continuaram trabalhando regularmente, às vezes perpassados, mas, também, às vezes alheios às prioridades políticas expostas nos discursos governamentais. Assim, se, por um lado, convênios e repasses de recursos para Estados seguiram sendo celebrados, cursos continuaram a ser ofertados e a Força Nacional continuou a ser empregada, por outro alguns fatores trouxeram a luz não apenas a mudança de orientação da política de segurança (como a exclusão dos Municípios dos processos de pactuação ou a falta de reuniões do Conselho Nacional de Segurança Pública), como seu alinhamento a diretrizes menos técnicas e mais ideológicas (como a realização de eventos de fortalecimento das capelanias militares ou a produção de um aplicativo chamado “pão diário”, que, de acordo com informativo do próprio Ministério, permite que os policiais acessem a Bíblia e recebam “reflexões diárias positivas”).
O grande marco da gestão Mendonça no Ministério foi o vazamento da informação de que a Seopi estava produzindo um dossiê de investigação de policiais antifascistas. Além de policiais, os nomes de professores também constavam entre as 579 pessoas monitoradas pelo Ministério.
Em paralelo a isso, diversas outras ações do governo apostavam e incentivavam a radicalização política dos profissionais de segurança como, por exemplo, o apoio dado, ainda na gestão Moro, ao motim de policiais militares do Ceará em 2020. Na ocasião o então Comandante da Força Nacional, coincidentemente um policial militar do Ceará com pretensões políticas, classificou os amotinados como “gigantes” e “corajosos”. Esses discursos foram alguns dos motivadores das tensões vividas pelo país no 7 de setembro de 2022 cuja comemoração foi permeada pelo receio de um golpe político sustentado por policiais militares.
Com a ida de André Mendonça para o STF, assumiu o Ministério o Delegado da PF Anderson Torres. A ida de um Delegado para o Ministério, ao qual a PF está subordinada, foi a gota d’água para que a confiança na instituição fosse definitivamente abalada e para a comprovação do poder político exerce sobre sua atuação. A questão da interferência política na PF perpassou toda a gestão Bolsonaro e foi a principal causa da queda da “estrela’ Sérgio Moro. As tentativas de controle do órgão chegaram ao ponto de, na primeira vez na história do país, o Judiciário ter que impedir a posse de um Diretor Geral, o Delegado Ramagem, para tentar evitar o aparelhamento da instituição.
Conforme a Professora Jacqueline Muniz, até o governo Temer o custo político de trocar o Ministro da Justiça era mais baixo do que o de tirar o chefe da Polícia Federal. A estabilidade no cargo dos Diretores da PF caiu por terra no governo Bolsonaro, que já nomeou 5 Diretores em 3 anos e três meses de governo, mesma quantidade de nomeações feitas por Fernando Henrique Cardoso – que era quem mais tinha trocado o comando da PF até então – durante seus dois mandatos.
Se, por um lado, a atuação concreta da gestão Bolsonaro na área da segurança pública é irrisória diante das suas bravatas discursivas – pouco de novo ou de concreto foi efetivamente realizado -, por outro, o Presidente tem uma carta na manga que pode ser um diferencial no processo eleitoral: por uma série de fatores que, segundo consenso dos pesquisadores da área muito pouco ou quase nada tem a ver com ações federais – o número de homicídios vem caindo no país nesses últimos anos.
Como se sabe, a taxa de homicídios é internacionalmente considerada o principal indicador de violência e criminalidade. Entre 2019 e 2021 os homicídios no Brasil entraram em uma tendência de queda que, de fato, iniciou-se ainda no último trimestre de 2018. Apesar de um leve crescimento em 2020, a número de homicídios em 2021 foi 7% menor do que no ano anterior.
Os fatores que influenciaram nesta redução são diversos e incluem, ao menos, as ações conduzidas pelos estados e Distrito Federal, alterações na dinâmica da criminalidade organizada, principalmente a redução da conflitualidade entre as duas maiores facções do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) em diversos estados e mudanças na demografia, com uma redução da proporção de homens jovens na população. Importante notar, ainda, que os estados da região Norte do país têm se descolado da tendência nacional de redução dos homicídios, o que pode ser explicado pela situação, naquela região, dos fatores citados acima, como discutido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em publicação recente sobre a região Amazônica.
De toda forma, essa variação, ainda que seja multicausal e, a priori, não seja correlacionada às ações atuais do governo federal, vem sendo reivindicada por Bolsonaro (e por Moro). Resta saber como esse discurso – assim como o discurso vazio sobre valorização policial, que não se traduziu em ações concretas relevantes – vai ser ampliado e consumido pela população no processo eleitoral.