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Políticas de saúde no governo Bolsonaro: o que perdemos? Retrocessos no SUS

Karina Calife 

 

O governo Bolsonaro foi, certamente, o pior de todos os governos para a saúde da população brasileira desde a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS. Grande conquista popular, se inicia com o movimento da reforma sanitária, consolidado na 8ª conferência nacional de saúde em 1986, tornando-se constitucional em 1988, quando a saúde passa a ter uma perspectiva de direito de todos e dever do estado (artigo 196, constituição brasileira, 1988). Artigos recentemente publicados (Souza et.al, 2018, Castro et.al, 2019) demonstram que o “fator SUS” foi um ganho para a saúde de nossa população: aumentamos nossa expectativa de vida, diminuímos a mortalidade infantil e materna, ampliamos o controle das doenças crônicas não transmissíveis, melhoramos os cuidados pré-natal e de assistência ao parto e nascimento, implantamos o melhor programa de atenção às pessoas com HIV/ AIDS do mundo, premiado diversas vezes, além de muitas outras ações de saúde que qualificaram o cuidado em nosso país. O investimento na atenção básica, a partir da implantação da Estratégia Saúde da Família foi importante nesse processo. É, pois, inquestionável a importância do SUS, nos 30 anos subsequentes a sua criação, para a saúde da população Brasileira. 

 

O financiamento do SUS, que sempre teve dificuldades, passa a ser fortemente ameaçado a partir do golpe de 2016 com o congelamento de recursos e o teto de gastos propostos pela PEC da morte (95/2016), que congelou investimentos em saúde e demais áreas sociais até 2036, ainda no governo Temer. Desde então, impactos negativos nos indicadores de saúde que não se viam há 30 anos, começam a acontecer em nosso país. Mas foi no governo Bolsonaro que assistimos à consolidação da diminuição de recursos e investimentos, agravado pelas absurdas crenças e descaso com as populações mais vulneráveis. Mais de 3 milhões de brasileiros deixaram os planos de saúde particulares e passaram a ser SUS dependentes desde o início desse governo. O orçamento da saúde viveu perdas de bilhões que deveriam ter sido investidos na saúde da população. 

 

Uma das primeiras ações que impactaram a saúde da população mais carente no governo Bolsonaro, foi seu posicionamento quanto a presença dos médicos cubanos, maior força de trabalho do programa mais médicos. O governo impôs condições para a continuidade da atuação destes profissionais, que levaram o governo de Cuba a encerrar a participação no programa. O programa trouxe saúde e atendimento médico para áreas e populações negligenciadas há décadas em nosso país. Essa ação, gerou uma crise na saúde pública, que vem sendo agravada a cada dia do seu governo. 

 

As restrições das políticas voltadas para direitos sexuais e reprodutivos, especialmente das mulheres, foi enorme nesse governo. Houve diminuição de recursos para o enfrentamento a violência contra a mulher em mais de 70% (senado federal), a diminuição do acesso ao aborto previsto em lei, inclusive para crianças vítimas de abuso e violência sexual. Em 2020, O ministro da Saúde, exonerou os responsáveis por uma nota técnica que defendia a continuidade de programas públicos de saúde da mulher com orientações sobre aborto e métodos contraceptivos, mesmo durante a pandemia. O departamento responsável pelas IST (infecções sexualmente transmissíveis), AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, perdeu autonomia e teve diminuição dos recursos para ações de saúde que sempre realizou.

 

O governo Bolsonaro enfraqueceu também a política de saúde mental no SUS, privilegiando interesses econômicos da indústria farmacêutica e de produção de manicômios, se contrapondo a lógica do movimento da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial. Desmontou políticas que investiam no atendimento humanizado e investiu em recursos destinados para a área de internações.

 

Muitas foram as ações do governo Bolsonaro em políticas públicas que interferiram negativamente na saúde da população brasileira: a liberação sem critério de agrotóxicos e pesticidas, as mudanças nas regras e leis de transito, o estatuto do desarmamento, o incentivo fiscal para indústria de refrigerantes, a proposta de redução do preço do cigarro, a “nova” política de drogas, que dá prioridade à abstinência e às comunidades terapêuticas, entre outras.

 

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) precisou lançar petições públicas contra a redução de bilhões de reais no orçamento do SUS para 2021, mesmo durante a pandemia da Covid-19. O Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO), enviado ao Congresso Nacional pelo governo Bolsonaro, defendia a retomada das regras da Emenda Constitucional (EC) 95/2016, do teto de gastos. A diminuição dos recursos para o já subfinanciado SUS resulta do fim da regra do orçamento emergencial para enfrentamento à pandemia, em dezembro de 2020. O enfrentamento da pandemia da COVID-19 no Brasil foi tão grave e desastroso, que merece um capítulo a parte.

 

Pandemia – a Necropolítica como caminho do governo Bolsonaro

A pandemia da Covid-19 promoveu mudanças significativas no cotidiano de todos. A crise sanitária impactou relações pessoais, sociais e familiares, trazendo sensação de desamparo e insegurança, agravadas pelo desastroso enfrentamento da pandemia pelo Governo Federal no Brasil. A falta de uma coordenação nacional que orientasse estados e municípios a seguir uma linha de cuidados com orientações adequadas foi determinante e, esse norte no enfrentamento à pandemia, não aconteceu como deveria. Ao contrário, vimos uma comunicação ambivalente, que confundiu a população com informações erradas e perigosas, deixando as pessoas com uma falsa sensação de segurança. Houve por aqui a clara intenção de disseminar o vírus, como política adotada (VENTURA, 2021). Em todas ações relativas à pandemia no governo Bolsonaro, o eixo principal foi guiado pelo negacionismo científico tendo como protagonistas as autoridades máximas do executivo no país. A tese negacionista do governo, ignorou a ciência e suas melhores evidências. 

 

A condução do enfrentamento a pandemia no Brasil não foi apenas pífia, mas intencionalmente realizada sem base na ciência e nas melhores evidências cientificas. Apostou-se em “tratamentos precoces” inexistentes para a Covid-19 e banidos pela comunidade científica nacional e internacional. Negaram as vacinas, dificultando sua aquisição em tempo oportuno, medidas não farmacológicas como distanciamento social, uso obrigatório de máscaras e o auxílio emergencial para que as pessoas pudessem cumprir o necessário distanciamento. 

 

Essas ações foram determinantes para sermos um dos países com maior número de óbitos absolutos pela Covid-19 no mundo. Contamos com 2,7% da população mundial e com 30% das mortes por Covid-19 no planeta, até aqui. Estudos científicos disponíveis, demonstraram, a partir de previsões realizadas com modelos matemáticos, que aproximadamente uma em cada cinco mortes no Brasil poderiam ter sido evitadas (HALLAL, 2021). 

 

A Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre a COVID-19, durante seu processo de investigação dos problemas da gestão federal no enfrentamento à pandemia, mostrou claramente a ineficácia e incompetência na compra de vacinas, incluindo suspeitas de superfaturamento das mesmas. Além disso, apontou para a falta de organização e decisão política que culminou em compras frustradas de insumos e em apostas equivocadas. Dentre os diversos erros cometidos, estavam as informações confusas à imprensa, a vacinação tardia de gestantes e puérperas e de adolescentes e crianças, problemas de organização do processo de trabalho e logística da campanha de vacinação, falta de treinamento das equipes e de uma comunicação coordenada e transparente. Mesmo com a grande quantidade de evidências de qualidade produzidas sobre o uso das vacinas contra a Covid-19, essas não foram utilizadas em tempo oportuno no Brasil. Isto teria sido fundamental para guiar as remodelagens necessárias na estratégia de vacinação, acelerando os benefícios da campanha, informando e protegendo os cidadãos.

 

Na saúde das mulheres, a pandemia foi ainda mais impactante: fomos o país com mais mortes maternas pela COVID-19, só melhorando os indicadores com o início da vacinação para esse grupo vulnerável, após muitas idas e vindas desnecessárias na política pública de saúde. Oito em cada dez mortes maternas pela Covid-19 no mundo, aconteceram no Brasil entre 2020 e 2021. Essa situação deixou uma legião de órfãos da Covid-19 em nosso país, que precisarão contar com políticas públicas específicas, complexas e sensíveis a frente. Aqui também se coloca uma questão de gênero, demonstrando que o desastre no enfrentamento a pandemia pelo governo Bolsonaro, foi ainda pior para as mulheres brasileiras. (nota técnica e manifesto, 2022)

 

Promover a ciência ficou a cargo de cientistas, professores e profissionais de saúde, sem apoio do governo e de políticas públicas e investimentos para tal. Redes de pessoas que promoveram a ciência e, em alguns casos, trouxeram a perspectiva e o olhar de gênero para o cenário, especialmente quando se falava da defesa da vida das mulheres na pandemia da Covid-19. Para além da perspectiva de gênero, a inclusão do olhar de gênero, aquele ao qual se somam ações concretas e realizações que levem em conta as necessidades das mulheres ao pensar e construir políticas públicas no enfrentamento a pandemia. Pesquisadoras presentes no enfrentamento à pandemia da Covid-19 tem conhecimento, fizeram descobertas, propostas e produziram dados que permitiram (e permitem) acompanhar e avaliar o que está acontecendo, para tomada de decisões adequadas, com base nas melhores evidências produzidas. Vale também lembrar que a linha de frente da pandemia é fortemente feminina. Em torno de 77% das profissionais de saúde são mulheres (artigo Julia, 2022. É importante reconhecer que, mesmo entre as mulheres, as desigualdades se colocam. A questão da raça/cor/etnia e as desigualdades de classe, de acesso a bens e serviços, se colocam imponentes. 

 

Poderíamos nos perguntar, ao analisar o que aconteceu no enfrentamento a pandemia no Brasil: por que nosso país tem uma das maiores taxas de mortalidade materna do mundo? Por que elas são bem piores entre as mulheres negras? Por que temos algo em torno de 80% das mortes de gestantes por Covid-19 no mundo? Por que a letalidade entre os povos indígenas tem crescido assustadoramente em nosso país?

 

Em meio a essa crise sanitária sem precedentes no mundo e especialmente no Brasil, com um enfrentamento negligente e criminoso pelo governo federal com a vida das pessoas, especialmente das mulheres, das pessoas pobres, pretas e periféricas produzindo tanta desigualdade, é fundamental que a ciência e os pesquisadores sejam ouvidos. 

 

Nosso país não defendeu todas as pessoas de maneira equânime e algumas vidas pareciam importar menos. Não existirá uma sociedade menos desigual, se não enfrentarmos essas questões e tantas outras, como o respeito as trazidas pelos movimentos LGBTQI+, as desigualdades regionais e de classe social, por exemplo. 

 

Lidamos hoje com a perda de milhares de brasileiras e brasileiros para a doença. São amores, amigos, pais, mães e filhos de muitas brasileiras e brasileiros que sofrem e choram suas perdas. O enfrentamento da pandemia da Covid-19 poderia ter sido muito diferente em nosso país que tem um dos mais importantes sistemas universais de saúde no mundo: o SUS (Sistema Único de Saúde). Bastava um governo comprometido com a vida, a empatia, a saúde e o amor ao próximo.

 

Referências: 

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Chioro A, Calife K, dos Santos Barros CR, Martins LC, Calvo M, Estanislau E, Pereira LA, Caseiro M. Covid-19 em uma Região Metropolitana: vulnerabilidade social e políticas públicas em contextos de desigualdades.

Castro MC, Massuda A, Almeida G, Menezes-Filho NA, Andrade MV, de Souza Noronha KVM, et al. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet (London, England). 2019;394(10195):345–56. Epub 2019/07/16. doi: 10.1016/S0140-6736(19)31243-7 . – DOI  

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Hallal, P. C. (2021). SOS Brazil: science under attack. The Lancet, vol. 397, n. 10272, p. 373-374. 

Maciel, Ethel et al. A campanha de vacinação contra o SARS-CoV-2 no Brasil e a invisibilidade das evidências científicas. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2022, v. 27, n. 03 [Accessed 20 March 2022] , pp. 951-956. Available from: <https://doi.org/10.1590/1413-81232022273.21822021>. Epub 11 Mar 2022. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-81232022273.21822021.

Souza, Maria de Fátima Marinho de et al. Transição da saúde e da doença no Brasil e nas Unidades Federadas durante os 30 anos do Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2018, v. 23, n. 6 [Accessed 20 March 2022] , pp. 1737-1750. Available from: <https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.04822018>. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.04822018.

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Karina Barros Calife Batista
Médica, Doutora em Medicina Preventiva FMUSP, Professora do Departamento de Saúde Coletiva da FCMSCSP na graduação e no programa de pós-graduação em saúde coletiva da mesma instituição. Membro do comitê executivo da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas. Coordenadora do IWL (Instituto Walter Leser).<br />