Bruno de Castro Rubiatti
Desde o início de seu governo, Jair Bolsonaro (PL) mantém uma relação problemática com os outros poderes da república, seja por ataques aos membros do Judiciário, seja pela postura conflituosa com o Legislativo. Muito do conflito com o Legislativo se deve a falta de iniciativa, ou mesmo de capacidade, do presidente em estabelecer diálogo e negociar com as lideranças do Congresso Nacional.
A própria formação do seu ministério se deu sem estabelecer diálogos partidários, quebrando a lógica do presidencialismo de coalizão onde a formação do gabinete se vincula a ideia de distribuição de influência sobre a agenda de políticas públicas para os parceiros de coalizão e construção de um apoio no Legislativo (Freitas, 2016). Ao se recusar construir uma coalizão em bases partidárias, Bolsonaro busca formar o apoio legislativo ao seu governo a partir das bancadas temáticas (Inácio, 2019). Entretanto, essa estratégia se mostra pouco frutífera, uma vez que as Frentes Parlamentares e suas lideranças não gozam de recursos institucionais suficientes para garantir uma coalizão legislativa estável.
A partir de então, a relação do Executivo com o Legislativo oscilou entre o conflito aberto – com membros do ministério, apoiadores do Presidente e o próprio chefe do Executivo, atacando e buscando deslegitimar o Congresso Nacional – e a busca de construção de um apoio no Legislativo a partir da distribuição de recursos orçamentários para parlamentares dispostos a votar na agenda do presidente. A adoção dessa estratégia se mostra pouco eficiente, uma vez que os recursos disponíveis são limitados e o apoio Legislativo conseguido é instável. Assim, o conflito se instala como regra nas relações institucionais do governo.
Cabe lembrar que o Congresso Brasileiro se divide em duas Casas Legislativas – a Câmara dos Deputados e o Senado – o que torna a construção de apoio legislativo ao Executivo mais complexa. No bicameralismo brasileiro, todas as iniciativas legislativas devem ser aprovadas por ambas as câmaras. Assim, apesar da agenda ordinária do Executivo iniciar seu trâmite pela Câmara dos Deputados, é necessário que o Senado também a aprove. O presente texto busca mapear a produção legislativa no Senado durante o atual governo, destacando as ações dessa casa legislativa sobre a agenda do Executivo.
Um primeiro ponto a se observar são os projetos que iniciaram seu trâmite no Senado entre os anos de 2019 e 2021: nesse período o sistema do Senado registrou a entrada de 3.991 iniciativas legislativas, contando Projetos de Lei Ordinária (PL), Projetos de Lei Complementar (PLP), Projetos de Emenda a Constituição (PEC) e Medidas Provisórias. Como era esperado, a maior frequência é de PLs, totalizando 3.333 iniciativas (83,5%), na sequência, mas com muito menor participação estão os PLP (5,8%) e MP (5,7%) e PEC (5,0%). Entretanto, apenas essa distribuição dos tipos de iniciativas não nos dá um quadro sobre a relação estabelecida entre o Senado e o Executivo, já que essas iniciativas são compartilhadas entre os poderes, com exceção das MP que só estão disponíveis para o Executivo. Dessa forma, o gráfico 1 mostra a distribuição dessas iniciativas por propositor.
Gráfico 1 – Distribuição de iniciativas por propositor
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Senado Federal
Como se pode notar, os Senadores são responsáveis pela maioria das iniciativas (82,4%), o que também é esperado, uma vez que os projetos iniciados por Deputados e outros Poderes começam seu processo legislativo pela Câmara dos Deputados, só entrando no Senado após a aprovação dos mesmos na câmara baixa, ou seja, esses projetos já sofrem uma filtragem prévia pela primeira câmara para, só depois, entrar no Senado (Araújo, 2008; Rubiatti, 2017). O mesmo não ocorre com os projetos dos Senadores, isto é, quem é responsável pela primeira filtragem desses projetos é o próprio Senado. Deputados aparecem como a segunda maior frequência, mas com apenas 11,3% das iniciativas, seguidos pelo Executivo (6,2%) enquanto os outros atores com capacidade de iniciativas apresentam apenas 0,2% do total.
Feito esse mapeamento das iniciativas, cabe focar na agenda do Executivo na câmara alta. Como dito anteriormente, os projetos do Executivo iniciam seu trâmite pela Câmara dos Deputados e só após a aprovação por essa casa é que entram no Senado. Porém, as MPs têm um rito de tramitação diferenciado: elas iniciam seu trâmite por uma comissão mista do Congresso Nacional – composta por deputados e senadores – e após o parecer dessa comissão é que os plenários da Câmara e do Senado irão deliberar sobre elas. Além disso, as MPs têm força de lei assim que editadas pelo Executivo, mas com prazo de vigência definido, isto é, após esse prazo, caso não haja aprovação, ela perde eficácia.
Das 246 iniciativas do Executivo registradas no sistema do Senado entre 2019 e 2021, 226 (91,9%) foram MPs. As 20 iniciativas restantes foram: uma PLP, duas PECs, 17 PLs. Aqui já se pode notar que a agenda do Executivo que entra no Senado é prioritariamente por MPs, ficando as iniciativas ordinárias como residuais.
No total, 114 matérias do Executivo foram aprovadas no Senado (46,3%), duas rejeitadas (0,8%), 99 foram MPs que perderam a eficácia (40,2%), uma se encontra sobrestada (0,4%) e 30 se encontram ainda tramitando (12,2%). Dessa forma, até o presente momento, menos da metade das proposições do Executivo foram aprovadas no Senado, o que pode ser visto como uma dificuldade do Executivo em conseguir apoio para sua agenda nessa casa legislativa. Chama atenção também o volume de MPs que perderam a eficácia, além do fato de que as duas iniciativas rejeitadas e a sobrestada também são MPs.
Tratando das MPs, também é possível analisar os resultados “aprovados”. Na verdade, foram computados como “aprovados” todas as MPs com resultados positivos, isto é, tanto as com o texto aprovado na integra quanto as aprovadas a partir de Projetos de Lei de conversão. Nesse sentido, o gráfico 2 aponta os resultados das MPs, distinguindo essas duas decisões.
Gráfico 2 – Resultados das MPs
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Senado Federal
Como se pode observar no gráfico 2, ao separarmos as MPs aprovadas entre aprovadas na integra e projetos e lei de conversão, a maior frequência passa a ser a perda de eficácia (43,4% do total de MPs). Também é importante destacar que a aprovação de MPs na forma de Projetos de Lei de Conversão indica que os legisladores atuaram oferecendo substitutivos e/ou emendas aos projetos do Executivo, mostrando que, mesmo nessas medidas de necessidade e urgência, o Congresso busca atuar de forma consistente. No caso do atual governo, 33,2% das MPs iniciadas foram aprovadas com alterações feitas pelos legisladores, ou seja, o congresso não se furta a agir sobre a agenda do Executivo. Dessa forma, apenas 11,1% das MPs foram aprovadas sem alteração no Legislativo.
Em suma, mesmo as MPs sendo um forte poder de agenda do Executivo, o Legislativo atua sobre elas e, no atual governo, a utilização desse poder não tem garantido sucesso na aprovação de sua agenda, o que nos faz retornar a ideia de que não se aprova projetos apenas com os poderes de agenda, é necessário a construção de maioria legislativa minimamente estável para que o Executivo consiga aplicar sua agenda. Entretanto, o governo Bolsonaro, ao privilegiar estratégias conflitivas, parece não conseguir estabelecer um diálogo com as lideranças legislativas que lhe permita a construção dessa maioria.
Ainda cabe tratar dos outros projetos iniciados pelo Executivo: PL, PLP e PEC. Mesmo sua entrada no senado sendo minoritária, alguns desses projetos fazem parte da agenda prioritária do Executivo, por isso, o gráfico 3 mostra os resultados dessas iniciativas.
Gráfico 3 – Resultados no Senado das PL, PLP e PEC propostas pelo Executivo
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Senado Federal
Como se pode notar, a maior parte desses projetos foi aprovado no Senado, indo para a sanção presidencial (no caso das PLs e PLP) ou para a promulgação (no caso das PECs). Cabe notar que esses resultados indicam que os textos vindos da Câmara dos Deputados foram aprovados na íntegra pelo Senado, ou seja, a partir desses dados só é possível distinguir que o Senado não fez alterações ao projeto; todavia, o projeto do Executivo que entra no Senado já passou pela avaliação da Câmara dos Deputados, podendo, inclusive, ter sido aprovado na primeira câmara um substitutivo ou emendas ao projeto original. Em suma, mesmo que o Senado tenha aprovado esses projetos, não é possível afirmar que eles não tenham sofrido alguma alteração no Legislativo. Dentre esses projetos aprovados no Senado se encontram duas PECs: uma se refere a reforma da previdência e outra sobre pagamentos de precatórios.
As propostas emendadas ou que o Senado apresenta substitutivo retornam a Câmara dos Deputados, onde será discutido o texto originalmente aprovado por aquela casa e as alterações do Senado. Assim, esses projetos passarão por mais uma rodada de discussões na primeira câmara.
Apenas um projeto apresenta resultado negativo (prejudicado). Além disso, parte significativa dessas iniciativas ainda se encontra tramitando na casa, o que pode levar esses projetos a serem arquivados por força regimental no futuro, caso não haja decisão. Todavia, essa baixa taxa de resultados negativos dos projetos do Executivo em revisão no Senado é comum: ao analisar os projetos que entram em revisão no Senado entre 1999 e 2014, Rubiatti (2017) aponta que, os projetos do Executivo – excluídas as MPs – tendem a ser ou aprovados ou emendados/substitutivos na câmara alta e que a maioria das retenções dos projetos do Executivo no Senado se dá por arquivamento por força regimental.
Os dados até aqui expostos mostram que o Executivo tem encontrado dificuldades para aprovar sua agenda no Executivo, seja pela quantidade de MPs que perderam a eficácia, seja pelo grau de modificação que o Legislativo tem aprovado. Porém, isso não significa dizer que o Congresso e, em especial, o Senado, se apresentam como obstrucionistas. Pelo contrário, o que se observa é uma ação que visa filtrar e alterar as propostas do Executivo. Em suma, são casas legislativas dispostas a discutir e negociar a agenda com o governo. Dessa forma, as dificuldades apresentadas estão ligadas a falta iniciativas de cooperação e negociação do Executivo com as lideranças das casas legislativas.
Outro elemento que indica essa falta de diálogo são as proposições de Decretos Legislativos (PDL) que visam suspender Decretos do Executivo: ao todo, entre 2019 e 2021, foram apresentados 81 PDL com o objetivo de sustar na integra ou dispositivos específicos de decretos editados pelo Executivo. Assim, a falta de coordenação entre os poderes fica mais evidente, sendo que no desenho institucional brasileiro, esse papel de coordenador cabe ao chefe do Executivo.
Por fim, esse texto buscou mapear o tratamento dado aos projetos do Executivo no Senado. Entretanto, cabe também destacar que nesse período o Senado também inicia e aprova projetos próprios, além de projetos dos Deputados. Assim, ao observar o total das iniciativas aprovadas no Senado, vemos que os projetos do Executivo representam 15,6%, sendo que deputados (25,8%) e senadores (57,7%) são responsáveis por iniciar a grande maioria dos projetos aprovados no Senado. Em suma, há uma forte atividade do Senado tanto em iniciar projetos próprios quanto em analisar (e aprovar) projetos do próprio Legislativo e, com a falta de coordenação pelo Executivo, é possível que muitas dessas propostas não estejam de acordo com a agenda do Executivo. Porém, essa análise das proposições do Legislativo foge do escopo desse trabalho, ficando aberta essa agenda de pesquisa.
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, P.M (2008) A Câmara Alta no presidencialismo brasileiro: o desempenho legislativo do Senado entre 1989 e 2000. In: L. B. Lemos (orgs) O Senado Federal brasileiro no pós-constituinte. Brasília: Senado Federal, Unilegis, p. 203-236
FREITAS, A. (2016) O presidencialismo da coalizão. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer.
INÁCIO, M.; NOVAIS, R. (2019). Um novo Presidente ou um novo Modelo de Governar?. IBEROAMERICANA (MADRID), v. 19
RUBIATTI, B. C. (2017) Sistema de resolução de conflitos e o papel do Senado como câmara revisora no Bicameralismo Brasileiro. Revista Brasileira de Ciência Política, s/v(23), pp. 35-74. DOI: 10.1590/0103-335220172302