Suely Araújo e Stela Herschmann
O governo Bolsonaro, desde o início, tem operacionalizado um projeto de desinstitucionalização da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA). Esvaziou as tarefas do Ministério do Meio Ambiente, transferindo a Agência Nacional de Águas para o Ministério do Desenvolvimento Regional e o Serviço Florestal Brasileiro para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O Presidente da República assumiu pessoalmente narrativa de forte deslegitimação das autarquias que têm papel central na implementação da PNMA, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que atua sobretudo na fiscalização ambiental e no licenciamento ambiental federal, e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que gere as Unidades de Conservação federais, que representam cerca de 10% do território brasileiro.
Vários policiais militares do estado de São Paulo, despreparados para atuar em política ambiental na escala nacional, foram colocados em cargos importantes nas duas autarquias, por interferência de Ricardo Salles, que se comportou o tempo todo como uma espécie de anti-ministro do meio ambiente. Jamais se tinha visto um titular do MMA guerreando de forma explícita contra a própria pasta. Servidores com perfil de lideranças internas no MMA, Ibama e ICMBio foram deslocados para atividades sem relevância. Há várias denúncias de assédio moral contra servidores desses órgãos, que foram proibidos de falar com a imprensa e até mesmo de prestar informações para pesquisas acadêmicas.
Iniciativas governamentais importantes foram completamente paralisadas, como destaque para o Plano de Ação para Prevenção e Combate ao Desmatamento (PPCDAm), principal responsável pela queda do desmatamento da Amazônia em 83% entre 2004 e 2012, bem como do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado (PPCerrado)[1]. O Fundo Amazônia, experiência bem-sucedida de pagamento por desmatamento evitado reconhecida internacionalmente, permanece desde janeiro de 2019 com um volume grande de recursos em conta parados, R$3,2 bilhões em valores atualizados. O governo extinguiu os dois órgãos colegiados que estruturavam a governança do fundo e inviabilizou tanto novos contratos com esses recursos quanto a entrada de novos aportes dos doadores, Noruega e Alemanha[2]. Gastaram-se mais de R$500 milhões em operações de fiscalização na Amazônia comandadas pelas Forças Armadas que se mostraram claramente ineficazes.
Em 2019 e 2020, pelas dificuldades de relacionamento com o Congresso que afetaram de forma geral o governo, houve dificuldade de aprovação das propostas legislativas encaminhadas pelo Executivo com temas relacionados direta ou indiretamente à política ambiental. As “boiadas” passaram por decretos, instruções normativas, portarias e até mesmo “despachos interpretativos”[3]. Na soma de incompetência do governo e pressão dos ambientalistas, conseguiu-se segurar os retrocessos em termos de lei stricto sensu[4]. Dois exemplos relevantes são a Medida Provisória (MP) nº 900/2019, que concentrava no ministro do meio ambiente os recursos da conversão de multas em serviços ambientais e que, por isso, denominada entre os ambientalistas como “Fundão do Salles”, e a MP nº 910/2019, conhecida como “MP da Grilagem”, que estendia a grandes ocupações as regras mais flexíveis atualmente aplicadas para pequenas propriedades. As duas iniciativas caíram por decurso de prazo.
Após a aproximação entre o governo e o Centrão, e principalmente após o início da gestão Lira na Câmara dos Deputados, esse quadro mudou muito. Os ambientalistas têm tido derrotas relevantes nas votações. Com o apoio do Executivo, a Câmara votou um texto polêmico, que caminha na linha do desmonte da política ambiental, para a futura Lei Geral do Licenciamento Ambiental e, ainda, aprovou nova versão para a Lei da Grilagem. Nos dois casos, a decisão está agora com o Senado, com probabilidade elevada de consolidação de retrocessos.
O projeto de desinstitucionalização da PNMA já provocou prejuízos grandes, incluindo no que se refere à imagem do Brasil no plano internacional. O país está se transformando num pária nesse campo. Essa imagem negativa marcou também a COP 26, realizada neste ano em Glasgow.
O Brasil foi para a COP 26 com uma única missão: reparar a imagem negativa do país na área ambiental e climática. Para isso, o governo Bolsonaro instalou o maior stand que o país já teve em conferências de clima e se empenhou em mostrar o “Brasil real” que, segundo o discurso oficial, ninguém mostra. O problema é que os dados produzidos pelo próprio governo também não apresentam o país que estava sendo divulgado na conferência. Por isso, a decisão pragmática adotada pelo governo foi simplesmente esconder as informações sobre desmatamento na Amazônia no período 2020/2021, para não prejudicar a campanha de marketing em curso. Os dados do sistema Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) estavam prontos pelo menos desde o dia 27 de outubro, como indica a data do documento de divulgação, e a COP 26 começou no dia 31.
A estratégia de esconder o quarto aumento consecutivo nas taxas anuais de desmatamento pode ter funcionado durante a COP 26, já que o país, enquanto sonegava informações para a comunidade internacional por duas semanas, conseguiu até mesmo receber alguns elogios dos principais negociadores dos EUA e do Reino Unido, John Kerry e Alok Sharma. Contudo, tão logo a verdade veio à tona, veio também a vergonha e a mancha na credibilidade. Os países enganados durante a COP 26 não têm motivos para voltar a acreditar neste governo, pelo menos não em matéria ambiental.
O Brasil apresentou poucos dias antes da COP 26 uma carta formalizando o compromisso de neutralidade de carbono em 2050, algo que já havia sido anunciado pelo Presidente Bolsonaro em pelo menos duas ocasiões, mas que ainda não havia sido comunicado por escrito. A carta, no entanto, não contempla nenhuma indicação de como o país vai cumprir o compromisso de longo prazo apresentado, trata-se de apenas uma promessa vaga e sem lastro.
Logo nos primeiros dias da conferência o Brasil se juntou a outros 110 países, que representam 85% das florestas do planeta, e aderiu à Declaração de Florestas. O principal objetivo da declaração é zerar o desmatamento até 2030. O documento fala também em fortalecer os esforços para conservar as florestas e prevê investimentos públicos e privados de US$19 bilhões. Além disso, em discurso virtual, o ministro do meio ambiente, Joaquim Leite, se comprometeu a acabar com o desmatamento ilegal até 2028. Os anúncios foram vistos como positivos de forma geral, mas enquanto isso o governo escondia que a taxa de desmatamento na Amazônia era a maior dos últimos 15 anos: 13.235 mil km2 desmatados entre agosto de 2020 e julho de 2021. Nos três anos de governo Bolsonaro, o desmatamento aumentou 53% e as multas relativas a infrações contra a flora caíram 39% na comparação com o mesmo período anterior à atual gestão (Figura 1).
Figura 1. Desmatamento na Amazônia e atuações do Ibama
Fonte: Observatório do Clima, com base em dados do Inpe e do Ibama.
Ainda no início da conferência, o Brasil também aderiu ao acordo sobre redução das emissões de metano. Um total de mais de 100 países, representando 70% da economia global e quase metade das emissões antropogênicas desse gás, se comprometeram a cortar as emissões de metano em 30% até 2030, em relação aos níveis de 2020. Como se trata de um gás de efeito estufa potente e de vida curta na atmosfera, um acordo como esse pode ajudar a humanidade a ganhar algum tempo para acelerar a transição para a neutralidade de carbono. O Brasil é o 5º maior emissor de metano no mundo, concentrando essas emissões principalmente nos setores de agropecuária e resíduos. Somente as emissões de metano do rebanho bovino representaram 17% de todos os gases-estufa do país em 2020.
Ambos os acordos são positivos para o clima se implementados. No entanto, o atual governo não dá nenhum indício de que irá implementar os compromissos assumidos. Pelo contrário, não tem qualquer plano de implementação das metas climáticas do país para orientar os esforços de cada setor da sociedade brasileira. Um plano como este é essencial e a ausência dele está sendo questionada judicialmente pelo Observatório do Clima[5].
Cabe explicar que compromissos como as declarações sobre florestas e sobre metano são feitos fora do escopo da Convenção Quadro da Nações Unidas sobre Mudança do Clima (United Nations Framework Convention on Climate Change – UNFCCC), ou seja, são promessas não-vinculantes e difíceis de acompanhar, pois não trazem mecanismos de transparência e supervisão. Se os países signatários desses compromissos estiverem de fato comprometidos com as metas assumidas, elas deverão (ou pelo menos deveriam) ser traduzidas em compromissos nacionais perante a UNFCCC, ou seja, essas metas seriam incorporadas nas contribuições nacionalmente determinadas (Nationally Determined Contributions – NDCs) dos países junto ao Acordo de Paris, facilitando assim o seu acompanhamento.
No que se refere à sua NDC, o Brasil também anunciou que submeteria à UNFCCC um documento atualizado, onde, supostamente, corrige a irregularidade que cometeu na NDC apresentada em dezembro de 2020. No compromisso climático apresentado em 2020, o governo manteve os percentuais de redução da NDC apresentada em 2015 (37% e 43% respectivamente nos anos de 2025 e 2030), porém a NDC 2020 adotou o 3º inventário nacional, que mudou o cálculo das emissões do ano de 2005, ano-base das metas nacionais. Com isso a NDC 2020 permitiu que o Brasil chegue em 2030 emitindo 400 Mton/CO2e a mais do que havia se comprometido na NDC 2015. Esse truque contábil na meta climática ficou conhecido como “pedalada climática” e está sendo questionada judicialmente por seis jovens brasileiros em ação popular perante a Justiça Federal[6].
Em discurso feito por vídeo, o ministro do meio ambiente prometeu elevar a meta de corte de emissões de gases de efeito estufa em 2030 de 43% para 50% em relação aos níveis de 2005. Ainda não se sabe exatamente qual será a base de cálculo utilizada para a atualização dessa nova NDC, mas o que se espera é que seja utilizado o inventário mais recente de emissões do Brasil, contido na Quarta Comunicação Nacional (2020). Se isso for confirmado, a nova meta de 50% se iguala em termos de redução de emissões à apresentada em 2015 (Figura 2).
Figura 2. Metas Climáticas Brasileiras para 2030 em relação ao ano de 2005 de acordo com cada Inventário Nacional
Fonte: Observatório do Clima.
Até o momento que esse artigo era escrito, a nova NDC brasileira ainda não havia sido submetida pelo governo no sistema oficial da UNFCCC. Ao empatar com o passado o Brasil segue infringindo o Acordo de Paris, que impõe ambições progressivas (artigos 3º[7] e art. 4.3[8]). O Brasil tem todas as condições de agir com ambição real, e se quisesse apresentar um compromisso compatível com o Acordo de Paris há mais de uma análise indicando que a meta deveria ser de pelo menos 80% de corte. Além disso, como já mencionado, o país não tem planejadas, muito menos em curso, medidas de mitigação domésticas, o que também viola o Acordo de Paris (art. 4.2[9]).
E assim o desmantelamento da governança e da política ambiental brasileira segue sendo promovido pelo governo Bolsonaro, tanto no plano interno quanto externo. Isso ocorre por atos ora simbólicos, com destaque para a deslegitimação de agentes do Estado como fiscais ou aqueles que representam o país internacionalmente, ora por retrocessos concretos por meio de decretos, instruções normativas, portarias e agora, até pior, leis. Os prejuízos dessa verdadeira cruzada contra o meio ambiente são muito graves e serão sentidos por anos, mesmo se conseguirmos corrigir a rota em 2022 ao eleger um novo governo. Será necessário um forte choque de gestão para reverter esses retrocessos. Precisamos começar a planejar e preparar as medidas nessa perspectiva imediatamente, mas os retrocessos simbólicos se enraízam na sociedade. Será preciso dar centralidade ao trabalho dos agentes de Estado que atuam nesse campo, por bastante tempo, para retomar a efetividade e a credibilidade da política ambiental. Não será fácil, nem rápido.
[1] Ver a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 760, que requer junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), a retomada do PPCDAm, entre outros pontos.
[2] Ver a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 59, que requer junto ao STF que o governo desbloqueie os recursos paralisados no Fundo Amazônia.
[3] Ver Ação Civil Pública nº 1009665-60.2020.4.01.3200 – 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da SJAM.
[4] Ver: ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães de. Environmental Policy in the Bolsonaro Government: The Response of Environmentalists in the Legislative Arena. Bras. Political Sci. Rev., v. 14, n. 2, e0005, Aug. 2020. https://doi.org/10.1590/1981-3821202000020005.
[5] Ver Ação Civil Pública nº 1027282-96.2021.4.01.3200 – 7ª Vara Federal Ambiental e Agrária da SJAM.
[6] Ver Ação Popular nº 5008035-37.2021.4.03.6100 – 14ª Vara Cível Federal de São Paulo.
[7] Art. 3º A título de contribuições nacionalmente determinadas à resposta global à mudança do clima, todas as Partes deverão realizar e comunicar esforços ambiciosos conforme definido nos Artigos 4º, 7º, 9º, 10, 11 e 13, com vistas à consecução do objetivo deste Acordo conforme estabelecido no Artigo 2º. Os esforços de todas as Partes representarão uma progressão ao longo do tempo, reconhecendo a necessidade de apoiar as Partes países em desenvolvimento na implementação efetiva deste Acordo. Ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9073.htm.
[8] Art. 4.3 A contribuição nacionalmente determinada sucessiva de cada Parte representará uma progressão em relação à contribuição nacionalmente determinada então vigente e refletirá sua maior ambição possível, tendo em conta suas responsabilidades comuns porém diferenciadas e respectivas capacidades, à luz das diferentes circunstâncias nacionais. Ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9073.htm.
[9] Art. 4.2 Cada Parte deve preparar, comunicar e manter sucessivas contribuições nacionalmente determinadas que pretende alcançar. As Partes devem adotar medidas de mitigação domésticas, com o fim de alcançar os objetivos daquelas contribuições. Ver: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9073.htm.