SPECIAL REPORTS

Regras fiscais e reordenação ilegítima das prioridades constitucionais

Élida Graziane Pinto

 

O financiamento dos direitos fundamentais tem primazia constitucional, mas sua consecução tem sido fragilizada por supostamente minar o processo de estabilização macroeconômica.

 

O arcabouço fiscal tem erodido a Constituição Federal, ao invés de lhe dar sustentação operacional no ciclo orçamentário de todos entes políticos da federação brasileira. Paradoxalmente a pretexto de manter o teto dado pela Emenda 95/2016, tem sido – paulatinamente – quebrado o piso da proteção social desenhado em 5 de outubro de 1988.

 

A despeito de não haver redução formal no rol de direitos sociais inscritos no art. 6º da Constituição, seus instrumentos de defesa na seara orçamentário-financeira têm sido submetidos a contínuo processo de esvaziamento ao longo desses trinta e três anos de sua vigência.

 

Assim são contingenciadas despesas primárias até mesmo obrigatórias, mediante sua submissão a controle de fluxo de pagamento para adiá-las e ajustá-las, o que dá ensejo, por exemplo, à formação de filas de espera nos benefícios assistenciais e previdenciários. Em igual medida, têm sido parcialmente desvinculadas contribuições destinadas ao Orçamento da Seguridade Social e foi mitigada a garantia de progressividade dos pisos em saúde e educação, como proporção da arrecadação estatal.

 

Despesas primárias foram eleitas como única variável de ajuste fiscal na Emenda 95/2016, sem que sequer fossem questionadas a regressiva matriz tributária brasileira e a expansão irrefreada das despesas financeiras diante da inexistência de limites para as dívidas consolidada e mobiliária da União.

 

A pretexto de recorrentes ajustes fiscais no Brasil, redesenhos normativos sucessivos incidiram sobre dois pilares (a saber, vinculação orçamentária e organização federativa solidária) que deveriam garantir – em reforço recíproco – a dimensão objetiva dos direitos à saúde e à educação e do arranjo sistêmico da seguridade social.

 

Desde 1988, a tese primordialmente adotada pelos poderes políticos seria a de que as finanças públicas tenderiam a um suposto desequilíbrio intertemporal por força do comportamento das despesas primárias, sem que se avaliasse concomitantemente o fluxo das despesas financeiras e a trajetória regressiva das receitas tributárias. Vale lembrar que a maioria das renúncias fiscais tem sido concedida por prazo indeterminado e sem monitoramento adequado do impacto nas metas fiscais e das contrapartidas prometidas no ato da sua instituição.

 

Daí decorreram dezenas de emendas constitucionais que tiveram – direta ou indiretamente – escopo de reduzir o arcabouço normativo que rege o custeio dos direitos fundamentais na Constituição Federal. A justificação de tais iniciativas sustentava que seriam mutuamente excludentes as políticas de estabilização monetária, câmbio flutuante e resultado primário teoricamente capaz de estabilizar a trajetória da dívida pública (que perfazem o assim chamado tripé macroeconômico), de um lado, e a garantia de direitos sociais no Estado de Bem-Estar almejado constitucionalmente para o país, de outro.

 

Como se fossem antípodas em disputa no orçamento geral da União, a tensão entre estabilidade econômica e efetividade dos direitos sociais se situava sobre frágil equilíbrio jurídico-institucional, com repercussão direta ou indiretamente para o processo de endividamento.

 

Dada a existência mal equacionada de inúmeros conflitos distributivos incidentes sobre as contas públicas, os pisos de custeio da saúde e educação e o Orçamento da Seguridade Social operavam, tanto no campo simbólico, quanto no pragmático, como uma espécie de contrapeso fiscal à necessidade de custo alegadamente ilimitado para as políticas monetária, creditícia e cambial.

 

Desvincular receitas, reduzir o escopo dos regimes de gasto mínimo e restringir o alcance interpretativo de transferências intergovernamentais equalizadoras das distorções federativas tornou-se estratégia, assumida implicitamente pela União desde o início da década de 1990, de estabilização macroeconômica, sobretudo, monetária.

 

Interessante notar a trajetória da desvinculação de receitas da União (DRU) no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), cuja maior repercussão é a redução do saldo de contribuições sociais destinadas ao Orçamento da Seguridade Social. A instituição da DRU se deu por meio da Emenda Constitucional de Revisão nº 1/1994, a pretexto de ser medida alegadamente transitória e excepcional, mas, desde então, foi sucessivamente prorrogada por meio de 7 (sete) emendas ao ADCT para estender a sua vigência até 31/12/2023 (Emendas n.º 10/1996; 17/1997; 27/2000; 42/2003; 56/2007, 68/2011 e 93/2016).

 

Por outro lado, cabe rememorar o esvaziamento da responsabilidade de equalização fiscal da União em face dos entes subnacionais nas políticas públicas de educação e saúde, cujo arranjo orgânico constitucionalmente pressupõe rateio federativo de recursos na forma tanto do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), quanto do Sistema Único de Saúde (SUS).

 

A omissão federal quanto ao dever de complementação equitativa na educação básica obrigatória afronta o art. 211, §§1º e 7º da Constituição e as estratégias 7.21, 20.6 e 20.7 do Plano Nacional de Educação (Lei federal nº 13.005/2014) que se referem ao conceito do custo aluno qualidade inicial e custo aluno qualidade (CAQi e CAQ). Tal omissão já foi diagnosticada, embora não totalmente sanada, pelas instâncias de controle, como se depreende da tentativa de postergar a quitação dos precatórios do extinto Fundef por meio da PEC 23/2021.

 

Na saúde, a falta de consolidação das pactuações federativas celebradas na Comissão Intergestores Triparte para aprovação do Conselho Nacional de Saúde e publicação pelo Ministério da Saúde restringe nuclearmente o alcance do art. 198, §3º, II da Constituição, tal como consignado pelo Acórdão TCU 2888/2015.

 

Some-se a isso o fato de que o piso federal em ações e serviços públicos de saúde – fixado inicialmente pelo art. 55 do ADCT em 30% (trinta por cento) do Orçamento da Seguridade Social – foi redesenhado de forma reducionista pelas Emendas 29/2000, 86/2015 e 95/2016, o que fez com que a participação proporcional da União no custeio do SUS caísse em quase 25% (vinte e cinco por cento) no volume global de recursos públicos vertidos pelos três níveis da federação.

 

É preciso reconhecer, como dois lados da mesma moeda, a regressividade proporcional de custeio dos direitos fundamentais por parte da União, de um lado, e a fragilização da equitativa descentralização de responsabilidades e repasses federativos que amparam políticas públicas definidas estruturalmente no texto constitucional, de outro.

 

Na série histórica dos seus trinta e três anos de vigência, depreende-se um implícito processo de desconstrução do constitucionalismo dirigente assumido na CF/1988, a pretexto de consolidação fiscal cada vez mais exigente da redução do tamanho do Estado. Trata-se, pois, de uma reordenação de prioridades alocativas em sentido contrário ao que fora definido constitucionalmente.

 

Tal trajetória foi criticamente acentuada desde a promulgação da Emenda 95/2016. Isso porque o supostamente transitório e excepcional “Novo Regime Fiscal” impôs vintenário teto global de despesas primárias, no intuito de conter, sobretudo, a progressividade de custeio proporcional à arrecadação estatal nas ações e serviços públicos de saúde e nas atividades de manutenção e desenvolvimento do ensino (respectivamente arts. 198 e 212 da Constituição).

 

Trata-se de constitucionalizar a orientação finalística de a execução orçamentária dever produzir resultado primário positivo, por meio da contenção global das despesas primárias até 2036, alegadamente em prol da sustentabilidade intertemporal da dívida pública brasileira.

 

O que está em disputa, estruturalmente, é a interpretação sobre o alcance das normas que tanto distribuem responsabilidades federativas em arranjos orgânicos para consecução de políticas públicas; quanto fixam vinculações de receita, deveres de gasto mínimo em saúde e educação e um orçamento especializado na seguridade social.

 

Tal contexto precedente é necessário para explicar o fato de que, neste 2021, a sociedade brasileira assiste à equivocada estratégia de conciliar o teto com a gestão dos efeitos prolongados da pandemia da Covid-19, mediante propostas de emenda à Constituição para revisão de regras fiscais outras que não o próprio teto evidentemente em ruínas.

 

Os projetos de orçamento federal para 2021 e 2022 evidenciam uma espécie de sequestro do auxílio aos vulneráveis para resguardar a extorsão de ajustes fiscais juridicamente controversos. Tanto a Emenda Emergencial, quanto a PEC dos Precatórios usam a mesma narrativa de suposta inexistência de alternativas para pagar o auxílio alimentar aos milhões de cidadãos brasileiros em situação de pobreza e extrema pobreza, enquanto mitigam de forma tergiversadora garantias de custeio dos direitos fundamentais. A título de exemplo, vale lembrar que, na Emenda 109/2021, foram desvinculados recursos dos fundos que amparavam diversas políticas públicas e, na PEC 23/2021, há inconstitucional tentativa de burla aos pisos em saúde e educação com a securitização dos recebíveis da dívida ativa.

 

Ao invés de planejamento intertemporal adequado, com a revisão do próprio teto em ruínas (algo que já deveria ter ocorrido desde a Emenda do Orçamento de Guerra), tem sido reformado contingentemente o ordenamento constitucional brasileiro, paradoxalmente prometendo migalhas fiscais aos vulneráveis, enquanto são erodidos pilares do piso da proteção social.

 

O saldo final desse redesenho normativo incessante é o garimpo de regras de desvinculação, desobrigação e desindexação, na famosa tríade DDD, sem que sequer seja resguardada segurança alimentar aos milhões de famintos da nossa sociedade. Está em pauta no Congresso, aliás, a proposta de o Executivo federal se desobrigar do dever de pagar tempestivamente suas despesas obrigatórias com precatórios.

 

A margem fiscal aberta tende a ser consumida imediatamente no ano das eleições nacionais e regionais, até mesmo com a provável expansão das emendas de relator, cuja transparência plena exigida pelo Supremo Tribunal Federal tem sido negada pelo Congresso Nacional.

 

Nesse cenário, não há qualquer segurança jurídica para a continuidade do Auxílio Brasil (sucedâneo do Bolsa Família e do Auxílio Emergencial) em 2023, tampouco há garantia de custeio suficiente das demandas sanitárias em face do risco de uma nova onda da Covid-19 (em função da variante ômicron) no projeto de lei de orçamento para 2022.

 

Ora, soluções casuísticas no ciclo orçamentário se prestam primordialmente a aumentar o poder de barganha dos mandatários políticos em busca da maximização dos seus interesses de curto prazo eleitoral. O balcão de emendas parlamentares dissociadas do planejamento setorial das políticas públicas e os créditos extraordinários destinados ao atendimento de despesas previsíveis substituem as garantias constitucionais de custeio dos direitos fundamentais.

 

Na ausência de solução estrutural para nossos impasses fiscais, impera o abuso de exceções, como se sucede com o uso dos créditos extraordinários na continuidade do enfrentamento à pandemia, tanto quanto é ampliada a fragmentação dos recursos públicos em feudos parlamentares.

 

Enquanto não assumirmos honestamente a necessidade da revisão ampla do teto de despesas primárias da União, seremos semestralmente sequestrados por essa lógica extrativista de reformas constitucionais incidentes sobre regras fiscais acessórias que apenas postergam e ocultam nosso conflito distributivo inaugural. Isso porque a riqueza privada subtributada é segura e relativamente bem remunerada na dívida pública, com garantia até mesmo de liquidez imediata como se sucede com as operações compromissadas.

 

Enquanto são erodidos os pilares sociais da Constituição de 1988, nunca saem do papel efetivamente as promessas residuais de enfrentar as iniquidades fiscais que perpassam as receitas e as despesas financeiras.

 

Embora seja inegável a necessidade de aprimoramento da qualidade do gasto primário para sua maior aderência ao respectivo planejamento setorial das políticas públicas, em termos de metas físicas e financeiras, bem como seja imperativa a busca por controle de produtividade mínima dos servidores públicos na despesa de pessoal, não se pode ignorar a necessidade de ampliar o foco do debate sobre as regras fiscais do país.

 

A raiz do impasse fiscal brasileiro reside na falta de coordenação entre as políticas fiscal, monetária, creditícia e cambial, com severa fragilidade institucional e normativa para a gestão da dívida pública.

 

Sem se ampliar o enfoque do ajuste fiscal para que ele passe a compreender também os impasses na gestão das receitas e das despesas financeiras, somente se empreenderá – de forma ainda mais veloz e evidente – a erosão orçamentário-financeira dos direitos sociais, em desconstrução do eixo de identidade da Constituição de 1988.

This article presents the views of the author(s) and not necessarily those of the PEX-Network Editors.

Élida Graziane Pinto
Doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais, com estudos pós-doutorais em Administração pela Escola de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EBAPE-FGV). Professora de Finanças Públicas da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV) e Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo<br />